Notícias de casa #13: Até a última gota (parte 2)
Nesta edição, trago a segunda (e última) parte de um dos contos que compõem meu segundo livro, Até a Última Gota (Mondru, 2023).
(Se você não leu a primeira parte, recomendo fortemente antes de seguir com a leitura)
Ninguém se aproxima dele. Ulisses triunfal voltando da guerra. Calado. Sento no ponto de ônibus para observar seus movimentos. Um homem de bigode fino e olhos acinzentados coloca uma dose em seu copo. Ele olha para baixo. Sozinho. Sempre sozinho. Uma vida que não pode ser contada por ninguém. Minha mãe sempre dizia: “Seu pai nasceu para ser sozinho no mundo. Não se dá com ninguém, já viu? Todo mundo está sempre errado. Ele, sempre certo”. Não tem escapatória. É o que parece procurar agora. Seria aquele o seu refúgio? Um lugar para fugir de sua nova vida. Pode ser que tenha mais filhos, dessa vez filhos cristãos, que sigam todas as suas regras. Pode ser que tenha se dedicado ao sacerdócio de sua fé inabalável. Pode ser que tenha decidido que não nasceu mesmo para este mundo. Findaria os seus dias peregrinando pelas linhas do metrô. Até o momento em que eu consegui contar, meu pai tinha sido caminhoneiro, pastor, inspetor de colégio, peão de fábrica e alcóolatra. Tantos ofícios. Nenhuma profissão. Esteve sempre em busca de algo novo. Esteve sempre dentro das demissões em massa. Uma alma perdida. Com um de seus cotovelos apoiando no balcão de metal, abre a Bíblia novamente. Tento imaginar qual sentença lê nesse bar imundo. Como estaria sua vida agora? Não parece estar perdido. Esse deve ser o seu bairro, tão próximo de antigamente, quando eu, ele e minha mãe amontoávamos nossas existências em domingos ensebados pela nossa infelicidade. No fim da tarde, ele se irritava. Dava um tapa na cara dela. Olhava-me com reprovação e dava partida no seu Kadett 84. Um homem infeliz. Sinto é pena. Minha mãe dizia e acariciava suas bochechas vermelhas. Eu a olhava. Não demorou muito para começar a me perguntar o porquê de aceitar tudo aquilo. Porque não chutava aquele homem para fora de nossas vidas? A casa era dela. O filho era dela. Seríamos felizes sem ele. Ah, como nós seríamos felizes! Mas não. Todos os domingos ela apanhou, até o dia em que ele decidiu nunca mais voltar. Agora, vejo esse mesmo homem em outro corpo. Massacrado pelo passar das horas. Carcomido. Parece um rato que passeia pelos vãos da cidade. Um copo numa mão. Na outra, a Bíblia. Qual passagem deve estar lendo agora? Será que lê? Eu lembro quando a igreja entrou na sua vida. Uma de suas mulheres queria que ele se livrasse do vício em álcool. Dos jogos. Das mulheres. Depois, quem sabe, até do adultério. Fincou as unhas na Bíblia com capa de couro e nunca mais soltou. Um homem perdido. Sinto é pena do seu pai, minha mãe dizia. Passava outra página do gibi. Uma mulher perdida. Uma vida inteira de perdas. Não dá para ser diferente. Sinto gotas invadirem os furos da minha meia calça. Levanto-me e parto em direção ao bar.
Olhe pra mim, meu amor. É Penélope. Você, Penélope, que vai se jogar ao mar e lutar contra o mundo enquanto Ulisses vai ficar em casa aos prantos. É essa a nossa ideia. É pra isso que somos contratados. Vamos chocar esses conservadores de merda. Você, nossa Penélope preta, vai estar em todos os cartazes e outdoors da cidade. Você é a protagonista. Estamos te dando o topo. Basta você se equilibrar pra não cair jamais. Era só o que me faltava. Balé. teatro, música. O mercado da arte. Enquanto eu olhava para a sua figura, meu olho tremia de raiva. Tudo o que eles queriam era a nossa presença agora. A gente servia pra algo muito maior. O mercado está se encaixando nas arestas. Criando novos estereótipos. Figuras de linguagem modernas. O preto, agora, tem o seu lugar. Não reclame e me agradeça por ter concedido a vocês. Era o que eles nos diziam. Estava no seu olhar. No seu olho de sempre, pra todos nós. O elenco inteiro. A companhia não havia ganhado um premiozinho sequer antes da sua presença. Era dever. Dever para mais um. Mais uma figura que se sentia à vontade para tocar em nós. Manipular os nossos ossos como se fossemos marionetes sem almas, ao léu de uma força maior que levava embora toda a nossa individualidade. Quem briga por ela? Não nós. Durante os ensaios, ele descansava as palmas da mão na minha pele. Frias. Pedia-me atenção. No palco, meus colegas olhavam para o taco do chão e fingiam que não era com eles. Sua figura. Sim. Uma silhueta tão sólida naquela fantasia de soldado, desenhava um enorme negrume no chão. Quando se movia, sua cabeça ia por último. Como um recado para nós: quem comanda ali? Pais. Uma figura tão nossa, tão distante. Lembro-me do dia exato em que cheguei em casa da escola e o vi esmurrando a si mesmo. Gritava e gritava. Estava sentado no sofá e inundava o carpete com as suas lágrimas. Outro homem gigante estava vestindo calça social e camisa branca, colocava a mão na sua testa. É uma provação muito maior, senhor. Deus sabe de todas as coisas e essa pedra está em seu caminho por um motivo. Você precisa encontrar o motivo, irmão. E então eu avancei alguns passos no corredor. Ele levantou os olhos. Sempre os olhos. Imensos. Recheados de amargura por toda uma vida que nunca foi. É ele. Ele é o garoto, pastor. A minha provação. Então pega a Bíblia, irmão. Vamos orar por essa alma tão penada pelos pecados mundanos. Vai sair. Sai, sai. Era a mesma sensação. Duas mãos imensas, geladas, que pousavam no meu rosto. Eu sentia o peso. Todo o peso. De canto de olho, vi minha mãe pálida, chorando, lendo o seu gibi de sempre. Imóvel. Estávamos todos imóveis. Eles vão te manipular. Balé, teatro, música. O mercado da arte. Eles vão usar o seu corpo, meu filho. E estão mesmo.
Qual é o seu maior desafio agora? Parece cansado, com os cotovelos afundados no balcão de metal. Uma alma que se arrasta pelos cantos de lugar nenhum. Vivia sempre, sempre cercado de amigos. Gostava de ostentar certo sorriso antes de tudo. Como foi? Será que eu me lembro do último dia? Ele me empurrou da cama até o balcão de um bar. Domingo de manhã. A avenida branca de neblina impedia um olhar perpendicular. O vento nos riscava a pele. Ele usava uma touca azul e parecia ensaiar alguma fala. Quer me dizer algo, pai? Foi um dos únicos dias que tive a coragem de lhe dirigir a palavras. Ele brincava de girar com a banqueta. Sentia os seus movimentos quase infantis. Queria me dizer alguma coisa. Estávamos só nós dois. Quase fui feliz por estar vivendo aquele domingo de manhã. Sem ele pedir, o garçom serviu um copo com gelo mergulhado num líquido vermelho. Sabe que eu nunca falei com meu pai? Eu não sabia. Ele se foi muito antes de eu ter a sua idade. Muito antes mesmo. Queria ter visto ele uma vez. Ele me visita algumas noites, mas nunca fala nada. Não queria testar ele. Não conhecia o limite daquela conversa. Depois, quando ele morreu, minha mãe se casou com um vagabundo qualquer. Sabe o que ela fez? Você sabe? Desiste de tentar atravessar a neblina com o meu olhar. Olhei para o seu copo. Ela me deixou na porta da casa da minha avó com minha irmã no colo. Tocou a campainha e me pediu pra esperar. Não me beijou. Não me abraçou. Apenas jogou um casaco fedido no meu ombro e disse que logo minha avó viria abrir pra gente. Tchau, mãe. Tchau. Ele parecia querer chorar. Chorava. Eu chorava sem parar pensando que nunca mais fosse ver a minha mãe na vida. Uma hora depois minha avó abriu pra gente. Eu e minha irmã. Naquele dia, ela me bateu tanto, mas tanto, que as marcas saltam na minha pele até hoje, você acredita? Não era hora de chorar e nem adianta lamentar estar vivo. Quem manda ter nascido de pai bêbado? Isso é castigo. A gente precisa aceitar. Minha mãe voltou. Alguns anos depois, seu marido aceitou os filhos do pedreiro. Nunca mais falamos sobre aquele domingo. Você sabia disso? Eu não sabia. Mas não queria dizer a ele. Você sabe porque eu não deixei vocês ainda? Eu não sabia. Quero que você se lembre de ter falado comigo. Não quero aparecer nos seus sonhos sem rosto. Olha pra mim. Você vai se lembrar do meu rosto pra sempre? Eu não sabia. Preciso que você diga que sim, porque eu não aguento mais. Preciso que você me diga que vai se lembrar de mim pra eu poder partir. Diga, porra. Eu não sabia. Não dava para saber, mas disse que sim. Então ele buscou a última gota no copo. Olhou para a avenida. Naquela altura, já clareava a paisagem. Levantou-se, afofou o topo da minha cabeça com dois tapas e desapareceu das nossas vidas para sempre.
Quero me repetir sentado nesse ponto de ônibus. Falar a mesma coisa por horas e horas. Libertar-me dos meus pensamentos. Vai começar a chover. Ele não se move. Eu também não. São anos. Continuamos tristes. Solitários. Separamos nossas escolhas. Um clichê de hereditariedade. Pai e filhos. Devo me aproximar? Ele mesmo disse. Queria que eu não esquecesse o seu rosto. Nunca mais. Eu não esqueci. Ele me perseguiu quando sai para desbravar os mares. O pai. A morte. A vida. A figura mais densa de toda a literatura universal. Quantos tentaram se libertar? Todos morreram afogados em amarguras. Perdidos. Esse é o problema, pai? Não há escolha. Em tudo que não há escolha tem solitude. O espetáculo, o riso, o choro, a vida sofrida dos editais. Tudo isso é ofício, escolha. É tudo falso. Atuação. Histórias. Ficção. Não existe solidão nas histórias. O nome que se dá é teatro. Artes cênicas. Movimentos calculados e ensaiados para chocar o público. Mas, sabe, pai, sempre quis te dizer, sabe o que não é uma escolha? Ser quem sou. Essa palavra horrenda que repetia todas as manhãs, lembra? Me acordava só pra me dizer. Eu sentia o vendaval que saltava da sua boca. Quente. Etílico. Perdido. Bicha. Coitado. Inferno. Veado. Perdidão. Carnal. Perdido. Bicha. Vai morrer. Sim, eu vou... já morri... Muitas vezes. Mas meus olhos continuam atentos. Hoje volto a te encontrar. Mesmo morto. Perdido. Sem os membros. Decepado. Continuo sentado nesse banco. Bicha. Perdido. Morto. Muito vivo. Pingos pintam minha face. Começa a chover na nossa cidade, pai. Bonito, não é? Talvez eu vá até aí. Beije os seus lábios. Me apresente como a grande perdição que arruinou a sua vida. Você se lembra? Bicha. Faço um desabafo telepático. Enquanto o senhor segue olhando para a sua Bíblia. Sem visão. Perdido. Talvez mais avesso do que eu. Perdido. Abandonado por tudo que acreditou ser de sua posse. Não há nada de novo sob a plateia, pai. Você ficaria surpreso de quantas histórias nós contamos sobre os mesmos pais que sofrem os mesmos problemas e descarregam em seus filhos da mesma maneira que o senhor fez comigo e ia fazer com outros centenas de milhares de sementes que descarregou em dezenas de mulheres ao longo de sua vida abençoada e perdida. Sem dizer nos pecados tão normais que tão comuns que o senhor recitava pra gente todos os domingos na hora do almoço enquanto a minha mãe ficava mais e mais preocupada que o sabor do frango se esvaia pela janela aberta da cozinha que levava também toda a nossa vontade de continuar ali com você vivendo os mesmos dramas que tantos outros homens perdidos e sofridos como você já viveram e vão continuar sofrendo enquanto não desistirem finalmente de atuarem no papel de homens de verdade.
Eu gostava mesmo era da tragédia de Eneias. Um homem de família, fugindo da guerra, levando seu pai e seus filhos nos ombros. Quilômetros e quilômetros. Era possível algo tão grande? Quantos quilômetros a mais Eneias percorreria caso tivesse jogado a carcaça de seu pai pelo caminho. Um peso desnecessário. Um homem morto. Tarefa inútil. Quando ele saiu de casa, perdi minha mãe de vez. Algo tão forte a arrastou direto para a cama e ela jamais conseguiu sair novamente. Visitamos dezenas de médicos, fizemos exames e vaquinhas para consultas fora do Brasil. Nada. Nenhuma melhora. Todos os dias, pelas manhãs, ela chorava e se debatia na cama hospitalar. Dizia que um cheiro horrível, putrefato, a impedia de viver. Implorava para eu cerrar a sua pele. Tirar essa camada podre que cobria a sua vida. Eu chorava. Todos os dias. Todos os dias, pai. Queria muito que você estivesse ali, bem no meio daquela sala. Pedia ao seu Deus que o levasse o mais rápido possível para aquela situação. Sorria ao imaginar as camadas da sua pele caindo, em câmera lenta, enquanto o senhor se ajoelhava e pedia perdão por toda aquela merda. Queria que, assim como aconteceu com a minha mãe, suas narinas fossem violadas por um cheiro insuportável de carne de gente morta. Todas as manhãs, impedindo o senhor de trabalhar, de ir à igreja e comer as suas putas na rua. Começaria com uma pequena mancha preta na cabeça do seu pau. Seria um inferno. Uma mancha mitótica que se avolumasse a cada segundo. Invasão. Bolas. Virilha. Coxa. Até o tornozelo. O senhor se transformaria num inútil bípede. Finalmente um peso para o mundo inteiro. Não apenas para mim. Pai. O senhor fez isso com a minha mãe. Mais uma de suas vítimas. Abandono. Nunca mais nos vemos. O senhor fugiu como fez a vida inteira. Eu te deixaria. Nunca faria como Eneias. Muitas madrugadas avancei com os planos de como ia te deixar sozinho na cama de um hospital quando finalmente caísse doente. Não sou Eneias. Sou Penélope. Te esperei por alguns anos. Pronto para ser arrastado para o abismo da cidade em sua companhia novamente, como quando o senhor me jogava no carro e saltávamos entre lugares escuros nos bairros do centro. As rodas do seu Chevette deslizavam em perfeita sintonia com as músicas das ruas. Buzinas. Ônibus. Pedestres. Chuvas inesperadas. A medalha de ouro afogada nos pelos do seu peito refletia uma luz imensa para as minhas retinas infantis. Chuvas. Todos os dias choviam. Como agora chove enquanto o senhor parece imóvel nesse balcão tão familiar para todos nós. Tão perto de casa. Quero deixar a sua carcaça velha, mas, algo te mantém aqui: em cima dos meus ombros.
Mais uma leva de passageiros desce do ônibus 307C-10. Fazia cinco dias que minha avó estava agonizando. Naquela quinta-feira que abria setembro, meu pai me puxou da cama e disse para me aprontar logo. Sem frescura, moleque. Anda. No caminho, os mesmos gatos de sempre importunavam os sonhos do bêbado do bairro na esquina. Perdido desgraçado, Deus há de o salvar até o juízo final. Minha mãe lia o seu gibi de sempre no banco da frente. Não disse uma palavra, como era de costume. Quando chegamos, tia Angélica fervia leite no fogão. Não olhou para o meu pai. Nem para a minha mãe. Deu-se um abraço e começou chorar. Vai lá, criança. Ela fica tão animada ao te ver. Pela manga da camiseta, meu pai me puxou direto para o quarto de vovó. O cheiro era de ontem. As janelas fechadas traziam um negrume sufocante para o ambiente. Minha avó moveu a cabeça pacientemente para nos ver. Sofria. Olhei-a imóvel, pelo o que me pareceu uma eternidade. Vovó me olhou de volta. Dê um beijo na sua avó, mamãe finalmente disse sua primeira palavra do dia. Me aproximei. Sentei na beirada da cama. Em seu busto murcho, um escapulário enferrujado de Nossa Senhora de Aparecida sambava ao ritmo do vento. Trouxe com cuidado o seu pescoço para perto de mim. Senti o abraço de alguém morto pela primeira vez. Foi a primeira vez que fechei os olhos para me defender. Nada. Ao fundo, ouvi os gritos de Tia Angélica e de meu pai. Custos. Histórias. Mentiras. Vagabunda. Você não presta. Ela não merece. Abandonou todos nós, lembra? Pois eu nunca vou esquecer. Um abraço eterno. No meio do ruído do tempo espartilhado, ouvi um sussurro: nunca esconda…ninguém…meu filho. Não entendi tudo. Eram muitas palavras ao redor. Eu fechava os olhos o mais forte que conseguia. De repente, senti um tranco incrível que me tirou da cama e me levou para o chão em questão de segundos. Se ajeita, seu lixo. Firma corpo. Anda. Também com lágrimas nos olhos, minha mãe me ajudou a levantar. Vamos embora dessa casa suja. Você que se foda, ouviu? Se vira com esse pacote inútil. Minha tia entrou no quarto e ajeitou o cobertor no corpo carcomido da minha avó. Vamos logo. Nunca mais quero ver essas merdas novamente. Antes de deixar o quarto, olhei uma última vez para trás. Com uma mão, tia Angélica secava o suor da testa de minha avó. Com o outra, empurrava um líquido branco numa colher entre as rachaduras dos seus lábios. Aquela foi a última vez que vimos vovó. A última vez que passamos por aquela rua. Tão próxima daqui. Um bairro inteiro de ressentimentos que enterramos tão próximos de nossas existências. Isso porque aquela frase sussurrada pela minha avó no dia de sua morte ainda passeia pelos meus ouvidos todas as madrugadas de primeiro de setembro.
Não coloquei esse filme de propósito. Mas ele não acreditaria. Calei-me. Na televisão, o grandalhão imita poses de estátuas gregas na piscina. O menino o olhava com desprezo. Não pelos músculos a mostra, mas pelo seu desejo crescente. Lá fora, chovia bastante. Tudo fechado. Eu e ele. Ninguém em casa. Mais uma vez. Eu não havia colocado o filme de propósito, mas o menino agora se masturbava pensando nos músculos do grandalhão. Lambuzava toda sua cara com um pêssego. Chupava a fruta. Pensava em seus movimentos da piscina. Arrastei minha mão pelo tapete e alcancei um copo de Coca-Cola. Roberto me olhava. Largou o pêssego, o grandalhão e o menino. Eu o olhei de volta. Não havia colocado o filme de propósito, mas ele entendeu a mensagem que eu queria passar. Passou a mão no meu rosto. Senti o seu passear aos poucos. Eu e ele no sofá. Sozinhos pela primeira vez. Fechei os olhos. Sorri. Não havia colocado o filme de propósito, mas, quando senti o frio das suas mãos puxar minha nuca em direção ao seu rosto, ouvi o barulho da porta abrindo. Fiquei imóvel. Senti a presença imensa de meu pai ocupar os vazios da sala. Aos poucos, o ar quente dos seus passos ficava mais intenso perto de nós. Sussurrou: está tudo bem. Vai ficar tudo bem. O uniforme azul do meu pai entrou na sala. Olhou para nós por alguns segundos. Olhou para a televisão. O grandalhão havia flagrado o menino se masturbando e agora o ajudava a brincar com o pêssego. Estavam se lambuzando juntos. Sentiu que não poderia mais ficar. Não queria mais sentir aquela presença. Eu poderia ter pausado o filme e ter desligado a televisão. Poderia ter empurrado o edredom que cobria as nossas pernas. Poderia ter apresentado o Daniel para o meu pai. Levantado e servido mais um copo de refrigerante para nós. Mas eu estava imóvel. Lá fora, a chuva havia aumentado. Mais e mais. Daniel puxou o sapato no tapete e se despediu de mim com um olhar. Meu pai entrou no banheiro. Seus passos eram lentos. Cheios de posses a cada movimento. Sabia o pânico que causava em mim. Gostava disso. Eu estava castrado. Morto. Com a libido esmagada por aquele corpo apertado no uniforme azul. Não havia colocado o filme de propósito, pai. Não sabia que era desse jeito. Desculpa. Não sabia. É só meu amigo. Somos da mesma sala. Preciso estudar. Ele não iria acreditar. Fechei os olhos. Não chorei, mas imaginava o que viria adiante. As falas, os cuspes, a surra. Os trechos da B
Bíblia, os xingamentos. A castração. Eu estava morto. Mantive-me dessa forma até ele sair do banheiro e começarmos o nosso ritual mais uma vez. Não havia colocado o filme de propósito. Mas ele não acreditaria.
Não. Chega de falar nele e em sua vida miserável. Chega de criar conjecturas, especular os seus pensamentos, desvendar as suas dores. Não. Chega. Eu vou me levantar quando essa chuva passar. Abrir os olhos. Está me dando náuseas relembrar desses episódios. Um homem baixinho e sem cabelo acaba de estacionar o seu carrinho de cachorro quente ao meu lado. Olha as minhas pernas. Sente tesão. Ou algo parecido. Adoraria me ver pelada. Tocar em meu corpo. Tocar uma valsa nos meus orifícios. Mais um merda sem coragem. Consigo imaginar a sua cueca apertar. Está me dando náuseas. Não consigo mais lembrar nenhuma passagem bíblica. Preciso voltar para o palco. Talvez consiga recuperar o meu papel. Se falar bem mansinha, com jeito, o diretor libera a sua Penélope da punição. Ele precisa de mim. A sua protagonista fluida, não binária, preta. Ele precisa de mim para a estreia. Os cartazes, os trailers, a divulgação nas redes sociais. Ele precisa da sua Penélope para ocupar a plateia. Eu faço tudo por vocês mesmo. Vai. Vai. Começamos daqui. Me jogaria o script da próxima cena. Ainda posso ser a estrela desse espetáculo. Me livrar da sua presença em minha vida. Esquecer esse encontro. Voltar a pensar em seu corpo a poucos palmos do chão. O desgraçado continua ali, sentado. O garçom já não serve mais nenhuma dose. Secou tudo. Até a última gota. Posso me livrar da sua presença sutil e corrosiva. Não tenho coragem de me despedir. No fundo, somos iguais. Mas eu não preciso da sua presença. Agora já me cansei de seguir os seus passos tão estáticos. O que me perturba é a sua paralisia. Um dia tão perdido. Tão covarde. Um verdadeiro peso. Mesmo longe, causa estragos. Chega. Sinto náuseas. O suor, cachorro quente estragado e ponto de ônibus. Só preciso deixar a chuva passar. Isso é fácil. Posso voltar ao figurino. Brilhos, fios e collants. A luz bate na minha retina e reflete na plateia. Monólogos. O meu momento. Momento da minha super star, e de aperta a minha bunda. Desgraçado. Peso na terra. O homem do cachorro quente chega um pouco mais perto. Você está ouvindo esse barulho da água? É bonito, não é? Todo o cheiro da chuva secando no asfalto. O seu cheiro. Tão bonito. Chega mais e mais perto. Eu olho para o meu pai. Ele se levanta. Tão bonita você. Tão linda. Vai até o banheiro. Ele chega mais perto de mim. Puxa o meu pescoço. Tão cheirosa. Sinto náusea. Preciso voltar ao palco. Ser a Penélope. Resgatar o meu marido. Receber os meus aplausos. Linda. Que peito gostoso. Tão gostoso. Joga o pau pra fora. Força na minha boca. Gostoso. Sim. Gostoso. Eu te dou um cachorro quente, você quer? Hein? Olha a chuva. Olha pra mim. Vem em nossa direção. Chega. Sinto náusea. Eu só preciso esperar a chuva passar.
Me carrega pelo braço rua abaixo. A pressa faz sambar o maço de cigarro preso no bolso da camisa. Assusta até os cigarros. Não sabem se caem ou seguram firmes. Meus calcanhares perdidos. Deslizo no asfalto. Sinto os pedregulhos. Estou descalço. Melhor assim. Meu sangue se perde nas avenidas do meu corpo. Posso sentir. Está tudo desordenado. Buzinas, gases, ruídos. Vou morrer. Em breve. Descemos juntos mais uma rua. A última rumo a sua igreja. Estava lotada. Pessoas lotam a passagem do corredor. Míope, vejo um homem de terno preto e gravata vermelha se movimentando no palco. Sua dança entretém o público. Um público que me parece conhecido. Meninos do bairro. Mas não os meninos que se atracavam e se batiam em volta do futebol. Não. Enxergo. Meninos que se vestiam igual a mim. Meninos que falavam a igual a mim. Meninos que se desejavam todos os finais de semanas, que sonhavam uma vida longe daquele bairro, onde poderíamos acordar. Todos eles. Estavam todos ali. Junto com os seus pais. Alguns com suas irmãs. Todos com olhares inferiores. Perdidos. Parecia mais uma de nossas festas. Mais um de nossos momentos catárticos, longe de nossos pais. Vamos ganhando a multidão, as pessoas parecem abrir espaço quando me veem. Meu pai e eu. Descalço, com o olho borrado de lápis e meia calça rasgada da noite anterior. Seu polegar escorrega. Meu sangue volta a sua ordem. Flui. O homem grita. Ensaia. A ordem volta. Passamos as fileiras infinitas de bancos de plástico. As pessoas me olham. O homem fala. Testa o microfone. Temos um lugar especial. Os meninos me olham. Meu pai me senta na cadeira. Olha para o homem. Ele me olha. Eu olho para ele. Seus olhos estão coloridos de sangue. Seu rosto está vermelho. Como se tivesse alergia das suas próprias secreções. Ele chora. Me vê e chora. Quem nos atravessa é o homem de gravata, que caminha até nós. Todos me olham. Ou talvez essa tenha sido a minha impressão. Ali, éramos todos iguais. Igual as nossas festas. Quando nossos laces e lábios se entrelaçaram como nos sonhos. Quando estava tudo escuro e podíamos fingir estar longe daquele bairro. Meias-calças novas, do tamanho certo, maquiagem com a cor certa para a nossa pele, pais compreensivos que nos deixam descansar após os nossos espetáculos. Ele volta a esmagar minhas mãos. Meu sangue chora. O homem está a menos de um passo de nós. Meu pai e eu. Eles se olham. Meu pai me olha. Meu sangue chora. Os meninos iguais a mim não choram. Talvez já tenham passado pelo o que estou prestes a passar. Posso ser o iniciante. O pastor estende e encosta a palma da mão no topo da minha cabeça. Ele olha para o meu pai. Podemos começar? Sim. Nós podemos.
Meus irmãos, minhas irmãs. Na vida, somos todos pequenos Lázaros. Morrendo e ressuscitando. Somos feitos principalmente de nossas deformações. Nossas perversidades. E só tem um caminho para desviarmos desse destino: a palavra de nosso senhor. Aleluia! Aleluia! Eu quero ouvir de vocês aleluia (Aleluia). Eu estou hoje aqui feliz. Um pouco nervoso, é verdade. Mas feliz. Principalmente feliz. Faz mais de uma semana que o pastor Cleber me convocou pra dar esse testemunho. Desde então, penso na melhor forma de começar. Faz dez anos. Dez anos, meus irmãos, que deixei a palavra de Jesus penetrar no meu âmago, senhores. E, nesse período todo, nunca fiz o que vou fazer hoje. Farei apenas e somente porque é assim que Ele deseja. Que todos nós envergonhemos Satanás. Amém. (Amém). Eu gostaria que os irmãos abrissem a Bíblia em João, capítulo 5. Mas, antes, quero que todos repitam comigo: mas a Deus tudo é possível. (A Deus tudo é possível). A Deus tudo é possível. (A Deus tudo é possível). Amém. (Amém). Por favor, irmãos da produção, coloquem nesse telão as fotos que separei. Olhem vocês, é assim que eu vivi por dez anos. Dez anos, meus irmãos. Sim. Eu fui resgatado do cativeiro de Satanás e fui trazido para o reino da luz pelo meu senhor Jesus. Eu não merecia, senhores. Não merecia. Mas ele me salvou. E, hoje, eu vim falar para vocês desse caminho até a luz. Caminho que eu, meus irmãos, consegui atravessar. Não sem luta. Não sem medo. Mas atravessei. O testemunho dessa noite, meus irmãos, é para que vocês entendam, de uma vez por todas, que essa prática, essa prática maldita não é um pecado eterno. É uma tentação temporária. Apenas isso. Por isso, é hora de salvar os seus filhos, netos, sobrinhos e amigos. É hora de entender que é possível. Olhe só para esse homem transfigurado. Olhem pra mim agora. Façam isso. Olhem. Amém? Amém. (Amém). Ninguém nasce assim, meus irmãos. Ninguém. Uma das perguntas mais frequentes que eu escuto é “se nasce assim?” Não, meus amigos. Jamais. Nem pela ciência, nem pela palavra de Deus. Deus é justo, perfeito. Justo e bom. Ele fez o homem perfeito. Mas, nós nos corrompemos, meus amigos. Mas é pela misericórdia que seremos resgatados novamente. Seremos sim, meus irmãos. Isso não nasce. Isso virá depois. Isso é uma construção de Satanás que corrompe o homem desde a infância. Vem da infância, meus amigos. Então, quem é pai e mãe aqui vai aprender a como reverter essa desgraça. Amigos, eu digo pra vocês. Menino que pensa como menina e menina que pensa como menino não é uma mudança de sexo. Não, meus amigos. Isso é o sopro do anjo das trevas. Apenas um sopro. Durante mais de trinta anos da minha vida imaginei que esse sussurro fosse um grito. Eu imaginava que pensava como uma mulher. Agia como mulher. Tudo como mulher. Mas, pasmem, meus irmãos, eu continuei como um homem. Da mesma maneira que minha mãe me pegou pela primeira vez na maternidade. Um homem. E foi o diabo que veio no meu ouvido para tentar me corromper para sempre. Por isso, repito: somos todos pequenos Lázaros. Passamos a vida morrendo e nascendo. Mil vezes, amém? (Amém). Agora, meus amigos, eu quero listar para vocês os principais vácuos que são preenchidos pela palavra do Satanás para trazer a prática da homossexualidade para a vida de uma criança. Eu quero que anotem, por favor. É muito importante que vocês, anotem, por favor. Todos prontos? Amém. (Amém). Esses fatores são: ausência da figura do pai. Um pai invisível é um pai que está em casa, mas o filho não vê. Pai, saiba sempre que o seu filho está te procurando. Mesmo que nunca diga. Mesmo que nunca demostre. Ele está te procurando. Isso cria uma predisposição para práticas criadas pelo Satanás. Papéis trocados. Valores invertidos. Filhos perdidos. Não esqueçam. A criança vê tudo. Tudo, meus irmãos. Um ambiente invertido é propício para a imoralidade e a delinquência. Por favor, anotem. Cuide dos seus filhos. Protejam eles do mal. Escute o que eu digo. Amém? Amém. (Amém). O outro ponto são os filhos indesejados. Você, pai, mãe, não pode rejeitar o destino que Deus preparou para vocês como um casal, como a união de uma só carne. Se o filho veio menino, ame-o e trate-o como um menino que Deus quis que ele fosse. O contrário a mesma coisa. Não rejeite a sua prole. Não lamente outro destino. Os planos de Deus são perfeitos e incompreensíveis neste plano. Devemos cuidar para que nada os entorte, para que essa planta cresça na direção correta. Agora sim eu gostaria que abrissem a Bíblia em João, capítulo 5. Ensine-os a seus filhos a lei do nosso…
Pensei que viria na minha direção. Achei que fosse me proteger. Finalmente. Quase senti uma felicidade. Cristais deslizavam sobre o asfalto. O céu fechado pintado em diversos tons. Carne com carne. Deslizava em movimento epiléptico. Em pé. Eu sentada. Presa naquele momento. Naquele ponto. Ninguém na rua. Só eu, meu pai e o homem do cachorro quente. Seu carrinho fincado num naco de mato da calçada. E só. Meu pai se aproximava. Vinha vindo devagar. Parecia esperar o momento certo para atravessar mesmo sem carros impedindo. Nós três. Vinha vindo. Carne com carne. Ele me chamava de gostosa. Perguntava seu eu gostava disso e daquilo. Da sua carne rasgando a minha garganta. Um momento epilético. Os cristais pincelando toda a minha perna. Ele se aproximava. Ia me proteger. Estava quase feliz. Quis chorar. Encostou o seu calcanhar nas rachaduras do piso da casa. Trazia sua sombra maltratada para perto de nós. Ia me salvar. Mas estava devagar. O homem do cachorro quente aumentava dentro da minha boca. Gritava mais e mais. Parecia não perceber o corpo de meu pai atrás de si. Como se alguém tivesse esbarrado no interruptor, a luz se apagou. Ninguém na rua. O bar fechou as portas. Tudo em segundos. Quando estava bem próximo de nós, trouxe o olho ruim para dentro da cena. Cor de leite. Desleixado. O odor etílico espancou minha narina que estava livre do polegar do homem. O outro olho parecia bom. Conservado de uma vida de visões trágicas. Sua feição era de um boi no momento derradeiro do abatedouro. Me reconheceu? Está de próximo na brincadeira? Não vai fazer nada? Espera o quê? A vida escapa pelos meus olhos. Quero gritar. Bater. Espancar. Sou pressionada para perto da virilha do homem que grita o quanto eu sou uma puta arisca de rua. Seu corpo assimétrico e desleixado estático na minha frente. Guardião de todos os meus abusos. É o mesmo covarde. Fecho os olhos. O homem percebe a presença do meu pai. Sorri para ele. Ganha uma piscadela de presente. É o nosso encontro. Silêncio. Estou no pântano final da minha vida. O senhor de todos os meus abusos. Ele me olha. Os movimentos se intensificam. O silêncio é cortado pelo urro de gorila do homem do cachorro quente que preenche o vazio entre os meus incisivos e a minha língua. Sorri. Como se tivesse me prestado um favor. Arria o zíper e caminho escuridão abaixo. Meu pai sorri. Cuspo toda a matéria que trago no meu âmago. O chão explode branquíssimo. Ele sorri. Seu corpo desaparece na escuridão. Meu celular toca mais uma vez. O espetáculo acabou. Era hora de voltar a ser a estrela do show. O encontro de Telêmaco com Ulisses é um dos pontos altos da história. Ciclopes, tempestades e deuses. Nada parece tão difícil quanto desviar de nossos próprios destinos.