Notícias de casa #13: Até a última gota (parte 1)
Nesta edição, trago a primeira parte de um dos contos que compõem meu segundo livro, Até a Última Gota (Mondru, 2023).
O encontro de Telêmaco com Ulisses é um dos pontos altos da história. Ciclopes, tempestades e deuses. Nada parece tão difícil quanto desviar de tantos corpos antes do metrô parar na estação da Sé. Sete da manhã. O vagão se preenche aos poucos. Estação por estação. Todos os dias. Homens e mulheres se olham como inimigos a essa hora da manhã. Lutam pelos seus corpos. Parecem vir de lugar nenhum. Nas manhãs de terças-feiras, as esperanças ainda estão longe de serem renovadas. Uma senhora de bengala acerta com o cotovelo em Ilíada. Odisseu desaba sob os três pés. Santa Cecília. Alguns metros quadrados liberados. Salvo o criador do cavalo de Tróia. O mundo dentro de um vagão é opaco. O ar é cavernoso, uma rocha que espanca o pulmão com ar usado e os ombros com a existência alheia. Uma vertigem a cada estação. Recolho a mochila e me martirizo por a ter deixado em minhas costas até então. Por isso a cotovelada da senhora. Dou razão a ela. República. É o maior dos alívios. O tronco ganha espaço. A camisa estufa alguns centímetros. Coloco a mochila no chão. Os ruídos dos alto falantes dos celulares se afastam de meus ouvidos. Me sento pelado. Eu poderia ter nascido na Suíça. Com olhos e pele branca. Pela janela, fantasmas. Vãos e vultos dançam como num espetáculo. Contemporâneo. Puxo o celular do bolso. Sete e dez. Vou chegar atrasado no ensaio pela primeira vez no ano. É melhor ficar em casa. Lembro de Ricardo nos falando no primeiro dia. A peça é a Ilíada. Um clássico. Cheio de segredos. O que eles querem é atualizar o enredo. Falar sobre a luta das mulheres em Penélope, abandono parental em Telêmaco e masculinidade tóxica em Odisseu. Colocar fluidez de gênero nas representações, negritude nas escolhas dos atores, movimento de dança contemporânea nas atuações. Os mecenas contrataram um diretor de fora dessa vez. Ele chegou com um papel na mão com uma lista de quinze tópicos a cumprir. Pequenas coisinhas para chamar a atenção do nosso público. Vamos vender diversidade. Não faz mal, não acham? E ria junto com três assistentes. Não é uma tarefa fácil, pessoal. Precisamos de todos vocês. Anhangabaú. Sinto vontade de saltar. Quero me livrar de escolhas ruins. Sair numa cruzada. Apesar do alívio de espaço, não é hora de respirar. Sinto o cheiro da Sé e fecho os olhos. O vagão estagna, alguns corpos me puxam, querem chegar pontualmente ao fim da linha. Quando os olhos voltam à realidade, é quando vejo a figura de meu pai pela primeira vez em mais de quinze anos.
Meu pai me chama de uma caverna horrível. Você não escuta quando a gente chama? O dia começa e, pelo que me lembro, sou um pouco mais que um bebê nesse momento. Mamãe está sentada no sofá, lendo gibi da Turma da Mônica. Enquanto me aproximo, sinto o peso do seu olhar empurrar os meus passos para trás. Avanço pelo corredor. Ela chora. O que eu preciso fazer para você escutar o que a gente diz? Ele quer respostas. Não vejo luz do dia em nenhum lugar. Acorda, seu moleque. Acorda. Por todo o lado, escuridão. Que merda você pensa que é isso aqui? Eu estou falando com você. Com você. Essa merda. Eu te pergunto: o que vale a vida sem a esperança da salvação divina? Ele cospe as palavras matinais. Em sua mão, segura uma meia calça. Invento uma vida cheia de luz na sala de minha casa. Eu choro. Minha mãe volta o olhar para as aventuras do Cebolinha. A meia calça samba entre os seus dedos e flâmula no ar como uma bandeira. Você não escuta o que a gente fala? De novo com essa merda? No meio da luz, aproveito o dia e corro no capim molhado de sereno. Das mil maneiras de existir, você escolhe a única impossível de se salvar? Volto para a luz. Um empurrão. Apenas um. Estou na cozinha. A meia calça em suas mãos. Sua mãe me disse que é só uma brincadeira e que você é só a porra de uma criança. Então, eu vou ser bem didático, tá bem? Nem pense em começar a chorar como a porra de uma mulherzinha. É assim: o calor. Dá meia volta no botão e aciona o gás. Sufoca a engrenagem elétrica. Calor. Luz na caverna. Mamãe se levanta. Deixa o gibi cair de seu colo. Eu quero a salvação. Quero que você me mostre o melhor caminho. Estica bem a meia calça que uso para brincar de teatro com os meus primos. Encosta só a pontinha na chama. Calor. A luz cresce. Sinto o dedo indicativo da minha mãe passear pelas minhas costas. Me pedindo calma. Vai passar. Quando o fogo já consome mais da metade do tecido, afoga com as suas próprias mãos. A chama, meu filho. Será que você não escuta? É isso que te resta se escolher o caminho das trevas. Se pensar em mudar o que Deus te deu. Homem é homem. Minha cabeça gira. Busca outro ângulo. Fujo de uma fumaça densa que espanca minha infância. Minha respiração emperra. Você me obriga a fazer o pior com você. As chamas, meu filho. Você quer queimar? Queimar por toda a eternidade? Não é possível que você não escuta. A cara inchada dos viciados. Um cheiro de álcool que se mistura com a fumaça densa. Ele avança. Empurra minha mãe. Ela desiste. Amassa a meia calça como quem descarta uma ideia ruim no papel. Mãos enormes forçam a abertura máxima do meu maxilar. Você precisa me escutar. O horror. As chamas, meu filho. A meia calça queima junto na minha garganta e faz digestão na memória da minha infância.
Talvez seja o efeito dos hormônios. Quem sabe a catarata que teimava em leitar a sua visão aos poucos. Mas ele não me reconheceu. São quinze anos. Ou mais. O vagão, naquela altura, já estava esvaziado. Eu não podia esquecê-lo. Ele estava esticado, murcho, moribundo. Esperava a porta se abrir para entrar. Eu, para sair. Mantive os meus olhos intactos. Fixos. Quando a porta finalmente se abriu, uma lufada de vento espancou minha retina, já seca. Pensei bem. Quinze anos. Ou mais. As pessoas começaram a sair. Meu pai entrou. Perdi meu destino. O terno, desproporcional, desnudava seu pulso e calcanhar. Com a unha do indicador direito, agarrava uma Bíblia socada. A visão estava pior. A mão direita apalpava o ar em busca dos agarradores do metrô. Encontrou. Arrastou o sapato social coberto por uma fina camada de poeira para o fundo do chão. Meu pai. Talvez o Estradiol ou o costume de me deixar para trás. Claro, havia me olhado de cima a baixo. Como todos os homens fazem. Mesmo que de canto de olho. Claro. Mesmo com a catarata. O que eu faria agora? O ensaio arruinado. Penélope não teceria sua colcha no terceiro ato. Eles encontrariam outro ator para fazer o papel não binário. Meu pai. Pedro II. Quero me aproximar. Talvez queira até que me reconheça atrás das unhas postiças e do cabelo que alisa minha cintura. A calça legging ou a fina camada de rímel que contorna e alisa meus olhos. Ele senta. Ao seu lado, o espaço vago. O salto agulha. Os lábios vitaminados com botox. Meu pai. Decido. Quero que me reconheça. Quinze anos. Abaixa a cabeça. Com certeza me vê. Talvez sinta até tesão por aquele corpo estranho que o olha. Aproxima-se. Quer sentir o seu cheiro. Sento ao seu lado. Joelho com joelho. Ele abre a Bíblia. Afoga sua cabeça nas letras miúdas. Olho-o de perfil. Já não sinto o vento das portas se abrindo. Apenas vultos que entram e saem. Algumas estações se passam. Ele afogado, preso nas palavras de Deus. O único caminho, como gostava de repetir. Como sempre esteve, está no mesmo lugar. Quero que me veja. Sinto vontade de virar um soco no seu estômago doente. Escuto: Tatuapé. Nem sinal de levantar. Planejo em como excitá-lo. Concentro-me em seus movimentos. Busco o seu olhar no reflexo da janela, entre túneis e prédios e trilhos. Ele não olha. Nunca se levanta. Continua o mesmo covarde. Pode até não me reconhecer, mas sei que me olha. Estamos voltando para casa, pai. Penso. O vagão corta a cidade sentido Itaquera. Nosso bairro. Meu e de papai. Até mamãe estava lá, lendo os seus gibis da Turma da Mônica, abobalhada pelas suas próprias desgraças. Pai, onde vamos descer? É um grande reencontro. A volta da guerra. Ulisses e Telêmaco. Ou seria Penélope? Ele joga o seu joelho contra o meu para passar... Se levanta. Patriarca. Desce. Eu vou atrás.
Quando eu estava morto, o manual prático dos garotos que desejavam o parricídio era um livro de Kafka, autor que, até então, não sabíamos nada a respeito. Nós traficávamos o exemplar surrado da biblioteca. Menos de cem páginas que definiam todo o nosso sentimento. Todos os garotos da sala. A notícia se espalhava. A cada leitor que o livro ganhava, a ideia de matar o próprio pai se tornava cada vez mais palpável na vida de todos nós. Cada um ficava com o exemplar por uma semana. Aquilo era transformador. Em geral, eu era o veadinho da turma. Amigo das meninas. A bicha que foi pega experimentando batom cor de cereja no banheiro. Que pediu um beijo para Carlos um dia no recreio. Mas tudo mudava quando o assunto era Kafka e seu livrinho mágico. Nessa hora, eu virara uma espécie de líder de uma gangue com um plano maluco. A gente passava horas a fio planejando como iríamos socar uma garrafa de vidro na goela do pai de Pedro, quando ele voltasse de uma bebedeira. Ou como deceparíamos o pau do pai de Tânia por ela ter descoberto que ele sustentava outra família no Maranhão. Tiago queria era enfrentar o velho num mano a mano e bater com sua cabeça na mesa de madeira, igual ele tinha feito com ele quando descobriu o seu 3 em matemática. Rosa desejava cortar os dedos do desgraçado para ele nunca mais escalar as suas pernas durante as madrugadas frias. Andrea queria amarrar ele numa cadeira, mãos e pés atadas, e fazer o verme assisti-la colocar fogo em toda a casa. No inferno, as chamas nunca se apagam, não? Eu sonhava em costurar a boca dele, bem devagar, como quem não tem pressa de encontrar o ponto certo do bordado, para nunca ouvir nenhum dos seus sermões religiosos. Era um clube. PA-RRI-CÍ-DIO. Eu falava devagar e explicava o significado daquela palavra para eles. Não que eu entendia muito bem. Mas tinha visto na televisão um psicólogo falando a respeito. Achei perfeito para o nosso clube. Coisa de criança. Nada demais. Passou. Passou. Os anos correram, todos tomaram o seu rumo, saímos da escola, claro que nenhum dos planos foi executado. Muitos daqueles garotos, inclusive, tornaram-se o perfeito espelho do pai (É possível fugir disso?). Mas, naquele momento, era tudo que a gente tinha. Muitas vezes, nos anos seguintes, encontrei nas palavras de Kafka tudo o que eu sentia sobre o meu pai. No dia quatro de maio de mil novecentos e treze, Kafka escreveu em seu diário “Toda vez que me encontro de frente com a figura de meu pai, meu ser diminui”. Desespero, portanto, em todas as células que se agitam com a sua presença. Talvez por ele estar sempre dentro de mim que em parte alguma me sinto acolhido. 1) Indigestão 2) Neurastenia 3) Eczema 4) Insegurança interior 5) Morte prematura.
Desceu do vagão. Oito horas da manhã. Esperei a porta quase se fechar por completo para acompanhar os seus passos. Impreciso. Rabiscava a borracha do chão. Sobe na escada rolante e continua olhando para baixo. Onde estou, não reconheço o seu corpo. Parece frágil. Um corpo costurado. Imagino que passou por cirurgias, talvez. Muitas quedas? Queria poder encostar do seu lado, chamar sua atenção. Mas não posso. Subo os degraus. Não posso acompanhar os meus movimentos. Procuro encontrar alguma coisa, só não sei o que. Sem qualquer tipo de rumo. Sigo meu pai como se fosse um fugitivo. Eu ou ele? Quem fugiu nessa história? Sinto meu celular vibrar. Deve ser o diretor. Deve gritar com todo o mundo que sabia que não podia confiar nesse tipo de gente. Que sem sua Penélope a história não pode prosseguir. Que as marcações do dia foram feitas em vão. Era a minha última chance. Tenho certeza que sim. Na bifurcação do túnel, ele escolhe o lado direito. Um homem vendendo amendoim sussurra no meu ouvido e aperta a minha bunda na escada. Gostosa. Safada. Veado. Vem ao banheiro. Vem pegar no meu pau. Aperto o passo. Venço a catraca. Sinto que o deixei muito para trás. Não escuto nada ao meu redor. Meus passos são melódicos e tontos. Minha boca aspira um ar intranquilo. Não há nada a fazer. Lembrei-me de Gogo. Ou seria o Didi? Não há nada a fazer. Era minha última chance depois da última vez. A sessão havia acabado para mim. O diretor estaria agora furioso gritando com a produção? Não dá para confiar nessa gente. Meu pai passeia pela rampa com a dificuldade de quem vence um barranco. Eu o observo do topo. Quero esperar alguns segundos para ver qual é seu destino. Patriarca. Perto da nossa casa, papai. Muito perto. Estaria ele tão próximo de mim todos esses anos? Sempre no último lugar que procuramos, não? Papai. Sempre tão previsível. Sempre o mesmo. Com a Bíblia na mão. Desço em direção à rua. Entre os motoristas de lotação, tenho meu momento de celebridade. Um com uma bola imensa na garganta, abaixo do lóbulo esquerdo, olha-me com raiva. Se o mundo assim permitisse, ele avançaria os seus ombros com escoliose até mim e puxaria meu corpo imenso para baixo das poltronas da sua perua. Me mataria. Eu sinto. O seu olhar. Decido revidar. Devolvo o olhar. Caminho muito lentamente. Alterno: um pouco nos seus olhos, um pouco no caroço. Concentro-me. Ele sente. Leva a mão até o caroço com vergonha. Quero humilhá-lo. Sente-se diminuído como homem. Menos gente. Sorrio e mando um beijo. Meu pai já sobe uma ladeira infinita do outro lado da rua e foge de vista. É uma viagem sem fim. Eu o sigo até o abismo.
O cobrador nos olha desconfiado. Antigo companheiro de trabalho. Dividiram a mesma linha por anos. Sentia o peso do seu olhar. Cresceu o guri, hein. Já dá pra mostrar as coisas boas da vida pra ele. Senão vira boiola. Cala boca, seu cuzão. Acha que filho meu vai virar boiola? Não sou da sua família, porra. Os sons das suas gargalhadas me feriam. Corri. Passei por baixo da catraca. Sentei no fundo. Fechei o olho e fingi que o ônibus deslizava para longe dali. Eu estava indo para outro lugar. Não estava. Eu e meu pai. Estávamos nós dois ali. O moleque, ali ó, bem ali, você pode ver uns bons peitinhos de uma forma bem barata. Vem logo. As paredes emboloradas, o cheiro putrefato, as pessoas se mexiam como títeres naquele lugar iluminado no centro da cidade. Homens de todas as idades socavam moedas goela abaixo de máquinas de todos os tamanhos. Testam a sua própria sorte. Almas suicidas. Ninguém estranhava a presença de uma criança ali. Eles só se preocupavam com queimar a renda semanal. Esses velhos brochas passam as manhãs inteiras aqui e, agora, no finzinho da tarde, é o melhor horário para tirar algum. De vício, ele entende. Solto alguns monossilábicos no trajeto para ele não se aborrecer. Desvio meu olhar para o seu de vez em quando. Acho que hoje é uma boa noite pra te mostrar o lado bom da vida, hein? Um homem levanta da banqueta com os olhos marejados. Ele me puxa com rispidez para o seu lugar. Os seus dedos enormes, magros e ossudos, marcam todo o meu pulso. Fica atrás dele como um segurança. Sinto pena do homem. É esse. Hoje foi muito fácil. Olha só a mágica, moleque. Eu não estarei aqui pra sempre pra te ensinar. Logo vai ser só você que vai levar dinheiro pra casa. Você tem muita sorte. É essa, essa aqui: desliza a moeda na boca da máquina. Aperta o botão vermelho. Aos poucos, o jogo se desenrola. É preciso ter calma. Olha, olha aqui, moleque. Levanta-se. Puxa a minha mão para o assento da banqueta. Está quentinho, tá vendo? É o calor a bunda fedida daquele merda. A vida é assim, moleque. Uns molham, outros fodem. Se liga. É essa. Então ele arranca outra moeda do bolso. É essa. Aperta o botão vermelho. Tudo se faz como uma sina escrita antes mesmo da gente nascer. É isso. Isso porra. Seu moleque. Você me escuta, ouviu? Me escuta, porra. Salta da banqueta. Joga suas mãos para os céus. Como se uma providência divina tivesse nos alcançado. Sua mão me puxa novamente. Abala a limpidez da minha epiderme. Vamos até o caixa. Na fila, olha para todos os lados. É hoje, meu filho. Hoje eu te mostro o outro lado bom da vida.
O bairro é idêntico ao da minha infância. Mamãe! Mamãe! Um menino grita pela sua mãe com a bicicleta no chão. Sua silhueta está desenhada no asfalto. Ele só faz berrar. Apenas alguns passos depois, a mãe chega para lhe socorrer. O bairro é idêntico ao da minha infância. Posso apostar que esses prédios não existiam há algumas poucas décadas. O mercado imobiliário tapa todos os vestígios de vida. Apenas algumas casas sobrevivem. Uma senhora, com vestido florido, varre o quintal de uma delas. É uma sobrevivente. Como todos nós somos. Sinto meu celular vibrar. Será que ainda esperam por mim? Seria uma esperança. Estávamos avançados na história. Hoje, entraria Penélope com um enorme figurino representando seu sudário para Laércio. Algo deslumbrante e colorido. Entraria trabalhando o corporal numa dança insinuante. Contemporâneo. Corpo preto. Penélope. No ato, descia do palco. Beijaria a plateia. Penélope. Ativa. Contestadora. Fluida. Puxaria por debaixo do sudário um feto e jogaria em todos. Sangue vivo. Vermelho. Uma sobrevivente. Não mais uma vítima. Ela era Penélope. Todos a esperavam. Em cima do palco, não atrás de uma história morta. Mas, calma. Não seria um dia de falta que acabaria com tudo. O diretor era contratado. Precisava de diversidade no elenco. Ficaria louco com os atores brancos. Coitado. Ele estaria louco. Desliguei o celular. Busco algo parecido com a silhueta do meu pai no fim da ladeira. Lá está ele. Desliza. Desenha. Corta o asfalto. Será a sua casa, enfim? Tão perto de tudo que já fomos um dia. Não acredito que teria tamanha audácia. Tantas vezes liguei. Tantas vezes me procuraram atrás dele. Não acredito que pudesse estar tão perto. Talvez, sádico, tenha até nos visitado ocultamente muitas vezes. Era bem capaz. Será que o moleque e a vagabunda sentiram minha falta? Ou será que Deus tinha abandonado essas pobres almas? Lavadas com o estrume mundano. Pobres coitados. Vejo-o lá, na esquina de nossa casa, escondido com uma Bíblia debaixo do braço. Espiando a nossa vida. Maldizendo minha mãe. Chamando-a de louca. Culpando-a por toda a minha existência. A porra de um homem de cabelo na cintura e meia calça. Fruto de uma foda qualquer na rua. Seu não era. Nem adiantava negar. Posso ver o seu rosto do outro lado da calçada. Olha para os lados. A rua está deserta. Claro. É ali que ele vai. Jamais seria a sua casa, é para um bar. Um lugar com uma parede inteira formada por garrafas de pingas. Ele é o único no balcão. Não olha para frente, apenas senta. Paro bem de frente. Quero ver até onde ele consegue me ignorar. Um bar. A sua única casa. O lugar onde ele sempre ia depois de sugar toda a nossa existência. Até a última gota.
O dentuço do bar derrama mais pinga no chão do que no copo. Em cima do balcão, um par de cotovelos dorme profundamente. Em volta, todos dançam em movimentos estranhos. Alguns adolescentes tiram fotos em frente a espelhos ensebados. Homens mortos esticam seus pescoços sem parar. Para todos os lados, como quem espera alguém que teima em não aparecer. Mulheres sisudas se equilibram em cima de um tablado. Ele pede mais uma dose. Espero num sofá de veludo no fundo do salão. Pediu-me para esperar a minha vez. Não precisava fazer nada. A moça vai te conduzir até o paraíso, me disse saindo do quarto. Cortesia da casa. Freguês do mês. Promoção. Duas horas pelo preço de uma. Pode escolher: tipo, tamanho, cor, estilo. Uma namoradinha resolve. Bem de leve, senão assusta. A recepcionista fez que sim. Olhou-me com pena. Senti vontade de chorar. A tristeza me invadia por inteiro. Duas da manhã. Os ônibus do centro da cidade abrem as portas. Imagino quem desce naquele momento. A janela está aberta. Fecho os olhos. Uma mão pequena desliza do meu ombro até o peito. Beija-me na bochecha. Sua vez, bonitinho. Vem comigo. Levanto. Olho para o balcão. Meu pai sorri. No caminho passamos por uma, duas, três, quatro portas. Todas fechadas. Imagino homens empurrando suas panças nas virilhas das putas. Uma coreografia sinistra que, no fim, todos esperam que acabe o mais rápido possível. Ninguém pode ser feliz num puteiro. Ela fecha a porta. Pede-me para se sentar na cama. Tudo escuro. Não a vejo. É apenas uma sombra que se move. O quarto cheira a colônia com um aroma doce demais. Estamos numa suíte modesta. Sua silhueta conhece todos os atalhos para começar. Está nervoso, meu amor? Seu pai pediu para pegar leve com você. O som de seu riso se mistura com o ruído das portas dos ônibus que abrem e fecham em ritmo coreográfico. Estamos numa suíte modesta. Senta no meu colo. Puxa minha mão até as suas ancas. Pede-me para a cheirar. Obedeço. O seu ar me invade e sinto vontade de chorar. Busco sua boca. Ela desvia. Não. Não, amorzinho. Vem aqui, vem. Minha mão flutua no ar. Não sei o que fazer. Ela caça. Acha. Assim ó. Puxa a calcinha de lado e me pede para enfiar. Tá vendo. Assim. Cavo o seu buraco pedindo socorro. Choro. Choro bastante. Sinto unhas enormes rasgarem minhas bochechas. Não. Não precisa chorar, meu amorzinho. Assim ó. Levanta do meu colo. O seu pai sabe que você é cabaço? Choro sem parar. Não faz assim. Você é meu amorzinho. Ajoelha-se. Tira minha calça. Eu posso sim. Cueca. Eu posso. Posso sim. Sua língua, unha, dente. Um passeio inimaginável. Eu choro sem parar. Dinheiro bom a gente gasta é com putaria. Para não trazer o mal para dentro de casa. A voz dele ecoa dentro de mim por uma hora completa.