Notícias de casa #04: autobiografia cine-onomástica ou Caetano, intérprete do Brasil
As notícias sobre as idas de Caetano ao cinema do mundo.
Um índice onomástico é uma lista, por convenção ordenada alfabeticamente, de autores, obras ou personagens que aparecem ao longo de um livro ou texto solto. Esses índices são muito úteis para pesquisadores e/ou leitores interessados em uma análise mais profunda de uma obra. Com ele, não é preciso percorrer as mais de trezentas páginas para lembrar daquele filósofo citado apenas uma vez por Nietzsche em um trecho de Assim falou Zaratustra. Outra utilidade interessante dos índices onomásticos é para uma pesquisa quantitativa de uma obra: quantas vezes o autor X foi citado no livro Y? Cinquenta vezes? Talvez isso possa dizer algo sobre a influência de tal autor na obra.
No caso do livro Cine Subaé (2024, Companhia das Letras), a leitura atenta do índice onomástico revela uma experimentação ainda mais radical: a autobiografia cinéfila de um dos artistas mais importantes dos nossos tempos, Caetano Veloso.
Nas mais de 400 páginas que formam o livro, uma coletânea de textos esparsos, ensaios, entrevistas e depoimentos de Caetano sobre cinema, alguns diretores e obras parecem resumir as ideias do artista sobre o tema. Pedro Almodóvar, por exemplo, é citado 17 vezes ao longo do livro, Júlio Bressane, 26, Jean-Luc Godard, 46. Seu próprio longa-metragem, O Cinema Falado (1986), é mencionado 37 vezes, o mesmo número de menções que Federico Fellini, e, como não poderia deixar de ser, Glauber Rocha é o mais citado, com 49 menções.
Os créditos deste texto poderiam subir nesta linha. São esses os nomes que parecem assombrar a trajetória cinéfila de Caetano, que oscila o tempo todo entre o orgulho de sua cultura fílmica e a angústia de nunca ter conseguido transformar em obra os seus planos nesta linguagem.
A história começa com sua infância em Santo Amaro, Bahia. Um ainda jovem Caetano frequentava (Todas as noites, por anos) os dois cinemas da cidade (o Subaé, que dá título ao livro, e o São Francisco), onde assistiu a Fellini, Antonioni e aos primeiros filmes da Nouvelle Vague francesa. Dessas experiências, se autoincumbiu de uma missão quixotesca: conscientizar e "ensinar" o povo de sua cidade a apreciar o cinema de autor, os “filmes de verdade”, em detrimento das estrelas da atuação e dos melodramas hollywoodianos. Tal tarefa só poderia ser planejada e executada por um jovem de 17 anos. E foi o que Caetano fez. Sentia-se no direito. Pegou a máquina e escreveu dezenas de artigos sobre o tema no jornal O Archote (distribuído em Santo Amaro), sua estreia na imprensa escrita.
Esses primeiros textos mostram a faceta angustiada do jovem crítico. Em um artigo denominado "O caso Crônica de Leitor", de 22 de março de 1961, vociferou:
Só apelo para a curiosidade de alguns para chamá-los à luta contra o mau cinema. Eis por que escolho filmes conhecidos, sucessos de bilheteria, para criticar. O crítico discorda do público, por quê? - essa é a pergunta que eu espero que nasça na mente de leitores inteligentes. Propositalmente escolho filmes como Imitação da Vida, La Violetera e Sissi (que são péssimos, mas agradam ao grande público) para espinafrar.
Um crítico adolescente, na luta contra os filmes ruins e o gosto do público. É um tanto cômico ler esse trecho e comparar com a trajetória posterior de seu autor. Mas é justamente neste ponto que reside a graça da vida. Seu registro. O lado do riso. As pretensões. Os anos que passam. Os filmes que acabam. Caetano jovem, em outro texto, escreve:
Desse modo, não consigo entender como vocês podem amar obras que desrespeitem sua vida e vocês mesmos. Não sei como conseguem identificar-se com aquelas coisas falsas que se movem na tela e que, sem dúvida, não são criaturas humanas; não entendo como podem ver seus dramas naqueles incidentes exagerados e mentirosos.
O jovem cinéfilo, que não tolera "coisas falsas que certamente não são criaturas humanas", vai dedicar, mais de cinquenta anos depois, uma coluna inteira no jornal O Globo para elogiar Avatar (2009), por muitos anos campeão de bilheteria mundial. Os tempos, o crítico e o público mudam. A beleza da vida.
Sua coluna, que se chamava "Cinema e Público", durou alguns meses. Nesse tempo, ainda houve espaço para brigar muito com o coletivo imaginário do "público de cinema" e se preocupar com a "anarquia" de um jovem diretor que fez um filme de estreia no formato de longa-metragem "chocante para o gosto do povo".
Trata-se de Glauber Rocha e seu Barravento (1962)
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Glauber é o principal diretor brasileiro do século XX. Não vejo ninguém discutindo esse posto. Não o melhor, mas o mais relevante. Com seu estilo polemista, mexeu com muitas estruturas que estavam sedimentadas no solo cinematográfico brasileiro. O que sempre me intriga quando vejo grandes nomes falando sobre o cinema de Glauber é o pisar em ovos. Percebo que muitos não são exatamente admiradores da obra de Glauber; há divergências estéticas e políticas nesse meio, mas todos pisam em ovos. É exatamente o que ocorre quando Caetano fala sobre seu conterrâneo. Em uma entrevista, ele chega a dizer que Glauber não tinha exatamente "talento" para o cinema narrativo, mas que seus filmes mudaram completamente sua visão política do mundo. Para não criar grandes desconfortos, sempre que é perguntado sobre a importância de Glauber no cinema brasileiro, Caetano volta à Terra em Transe (1967). É conhecida a história de que o filme foi uma das molas que impulsionaram a criação do movimento tropicalista por Caetano e Gilberto Gil. E isso não é algo pequeno.
Junto com a peça O Rei da Vela, foi o filme eldoradiano de Glauber que mostrou a Caetano que o anárquico pode, sim, partir de nossas terras. O recorte e cola. A bagunça. O pop-art e o erudito. A imensidão de conexões sinápticas tem tanto a dizer quanto às metáforas políticas narrativas.
Mas, fica por aí.
Sinto que Caetano se distancia de Glauber de tal forma, em determinado ponto da vida, que prefere não falar no assunto. Ficam as lembranças dos primeiros encontros na Bahia ("Toda vez que a gente se encontrava, ele se apresentava de novo"), a primeira exibição de Terra em Transe e os encontros esporádicos posteriores. Só.
A verdadeira filiação de Caetano é com o cineasta paulista Júlio Bressane e seu Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), com as posições sobre cinema e arte de Godard e com toda a obra de Federico Fellini. A impressão que fica para o leitor de Cine Subaé é que Caetano procurou, em todos os filmes de sua vida, as cenas de La Strada (1954), de Fellini. Ele mesmo conta em uma entrevista que, após assistir ao filme em um domingo pela manhã, passou "O dia chorando, sem comer. Minha mãe ficou preocupada". O filme marcou para sempre a vida e as criações posteriores de Caetano. E isso é engraçado. Todo aficionado por cinema tem um filme que estraga sua vida fílmica, pois deixa uma marca tão profunda nos seus sentidos que passa a ser uma presença fantasmagórica em suas experiências posteriores. Um ponto de partida, sempre injusto com o que vem pela frente. As caretas de Giulietta Masina, a trilha sonora de Nino Rota. Uma vida inteira em duas horas. Fellini é citado, por mais que Caetano tente não fazê-lo. O diretor é sempre citado. Está no fragmento das primeiras memórias, nos sonhos dessa época da vida entre a infância e o juízo que nos aglutinam pelo resto de nossas vidas. Por isso é bonito. E esse registro no livro faz as páginas valerem a pena.
Sobre Godard, Caetano me parece cultivar uma espécie de espelho. Pode ser seu lado narcisico, já mencionado no emblemático capítulo de seu livro Verdade Tropical (1997), aflorado, mas sinto que Caetano se vê em Godard. Figuras incuravelmente artísticas, acima das críticas e do público, que falam (e fazem) o que querem. Sentem o mundo de uma forma diferente. Godard se sentia dessa forma. Caetano segue na mesma linha. Uma filiação unilateral, mas visível.
Com Bressane (poderia estender a Sganzerla também), Caetano é só elogios. Qualquer corte realizado por ele, Caetano aprecia. Bressane e os seus marginais são o cinema brasileiro. Sua essência. Ele encontrou o corte final, o que merece ser visto do que é produzido em nossas terras. Caetano se filia aos marginais (e, consequentemente, se distancia de Glauber) por toda a vida. Fica preso ao anarquismo lírico e desajeitado, mas brilhante, da turma de Bressane, Sganzerla, Tonacci.
Restam-me dois tópicos para falar sobre a autobiografia fílmica de Caetano: Pedro Almodóvar e seu O Cinema Falado. Pedro é o maior amigo que ele cultivou no cinema ao longo de todos esses anos. Participou de seus filmes, incluindo uma das cenas mais bonitas do ótimo Hable con ella (2002), e colaborou com trilhas sonoras.
É deliciosa a história de quando Wong Kar Wai “rouba” uma gravação de Caetano de "Cucurrucucú Paloma", que Almodóvar queria colocar em seu filme. Wong Kar Wai foi mais rápido e, sem permissão, colocou-a em seu excelente Happy Together (1997)
O diretor espanhol é protagonista de uma das entrevistas mais interessantes do livro. Em uma espécie de teatro, a edição de agosto de 2000 da revista Rolling Stone de Madri colocou Caetano e Almodóvar frente a frente. La última cena de Almodóvar y Caetano Veloso. Esse é o título. E é hilário. Os dois, com suas personalidades, em um jantar. Há rubricas teatrais, cenas e falas. É teatro. Ou melhor, cinema. Uma das cenas:
ALMODÓVAR: Humm, que delícia. Eu faço como o escravo que prova para impedir que seu amo seja envenenado.
CAETANO: No Brasil, se você come do meu prato antes que eu prove, existe uma superstição que diz que nunca seremos amantes.
ALMODÓVAR: E por quê?
CAETANO: A sabedoria da superstição.
ALMODÓVAR: Pra mim é um costume muito antigo, ancestral, do criado com o amo. E, como eu te admiro muito, faço o papel do ser inferior que prova, antes de ti, tudo o que vais comer.
Diante de um momento único de sedução gastronômica, entre uma trufa e outra, o universo feminino surge, musicado ou em película, como o denominador comum de ambos.
Outra cena:
ALMODÓVAR: Não me ofereça estimulantes para depois, porque não posso. Ou seja, nem café, nem cocaína.
CAETANO: Um pouco de doce.
ALMODÓVAR: Eu me encho com todos os doces que me oferecem.
CAETANO: Adoro chocolate espanhol.
ALMODÓVAR: Meu irmão faz um que é uma delícia. E eu estou viciado.
CAETANO: Supõe-se que o chocolate é um substituto do sexo.
ALMODÓVAR: Prefiro sexo.
CAETANO: Eu também.
Fim.
E chegamos ao ponto mais curioso do livro: o único longa-metragem dirigido por Caetano. Partimos do pressuposto de que grandes artistas populares podem fazer qualquer coisa. Mas não é bem assim. A ideia de Caetano foi boa. Um filme de ensaios sobre possíveis ensaios. É lindo. Inclusive, roubei essa definição para esta newsletter. Gilberto Gil disse uma vez que Caetano conta os filmes de forma mais bonita do que eles realmente são. Eu acredito. Seu filme é um amontoado de ideias soltas. Ensaios, de fato. Caminhos. Veredas. Em duas horas de exibição, versa sobre Wim Wenders e nudez. Cinema e casamento. Tem Maurício Mattar oferecendo sua nudez para Regina Casé e Dedé (sua primeira esposa) dissertando sobre a linguagem fílmica. Tudo misturado, como é Caetano, seu modo de pensar.
Houve vaias na estreia no Festival do Rio (desconfio que o público voltou para assombrar o menino que vociferava contra eles em suas colunas em O Archote), e fúria dos colegas cineastas (é famosa a crítica de Suzana Amaral, diretora de A Hora da Estrela (1985)). Em uma entrevista, Caetano diz que pretendia ensaiar em O Cinema Falado para depois fazer um filme narrativo. Ele fala sobre ares anti-godardianos na edição e sua experiência "acordando cedo" para ir ao set todos os dias. Músicos trabalham à noite, cineastas durante o dia. Às vezes, foi isso.
Apesar de tudo, seu filme é curioso. Eu me diverti. Mas só. Não estava pronto.
Acontece que Caetano ganhou a função de autor, como definiu Foucault. Há toneladas de material dele na imprensa, no mercado fonográfico e na editorial brasileiro. Essa questão pode tornar Cine Subaé um pouco cansativo para alguns. Afinal, até posts de Instagram e Facebook sobre cinema ganham espaço aqui (podemos comprovar a autoria de Caetano nesses textos? Tenho dúvidas). Mas, mesmo assim, há pérolas (como seu incrível ensaio sobre Carmen Miranda) escondidas. Textos que apresentam uma posição crítica ao que se pensa como cinema no Brasil. E isso é precioso.
Por aqui, sigo assombrado com a capacidade de sua poética do bagunçar. Como em Verdade Tropical, saio outro da leitura. Querendo ver mais cinema. Sacudir. Fazer algo. Discutir. Sempre me hipnotizo. Talvez ele seja único. Um intérprete do Brasil. Sem de todas as suas controvérsias e discussões em torno de suas atitudes. Mas isso é ideia para outro ensaio. Caetano é assim. Uma tentativa. Nosso erro. Cae. Sempre me emociona. Me enche de algo que sou incapaz de denominar, mas vou chamar de esperança. E assim foi. Fim.
Adorei o texto! O encontrei em um momento um tanto engraçado, pois ontem de noite presenciei uma breve discussão (super aleatória) sobre Caetano em uma disciplina da faculdade. Ouvi falar sobre seu filme & inspiração em Gordad pela primeira vez ali. Agora fiquei curiosa para assistir ahahah
Amo o Caetano, meu gato leva o nome dele, há algo na minha formação que só foi possível a partir do eu pude inventar de mim ouvindo as canções dele e sentindo o que eu sentia. No entanto, quando li o livro, fiquei com uma sensação estranha de que o objeto “livro” existia apenas para me convencer de que a opinião de Caetano sobre aqueles filmes (ou até mesmo algo maior, no caso o cinema) é definitiva. Isso me incomodou. Em muitos momentos, é repetitivo e dogmático, meio contra o espírito libertário que ele tanto admira no Godard. Quando acabei, pela primeira vez, eu achei melhor ficar com a minhas próprias opiniões destoantes de Caetano.