Notícias de casa #03: trabalhar cansa
As notícias de Ousmane Sembène e as humilhações que sofremos no trabalho.
Em um trecho de Peles Negras, Máscaras Brancas (1952), Frantz Fanon discute como a cultura colonial constrói um mundo maniqueísta, dividido entre a pele branca e a pele negra. Dois lados que não se misturam, que ocupam polos opostos na sociedade, definindo quem merece viver ou morrer.
De acordo com Fanon, a estrutura da violência racial está profundamente ligada à manutenção de elementos herdados da era colonial. O filósofo argumenta que traços coloniais permeiam o mundo contemporâneo, preservando a memória da opressão racial. São elementos minuciosamente construídos.
Esses fragmentos, atrelados à força cultural colonial, são facilmente diluídos no cotidiano das pessoas, manifestando-se e imprimindo uma presença constante de cenas coloniais, moldando a subjetividade e impondo a submissão das pessoas negras em diversos setores da sociedade.
Essas cenas se apresentam de diversas formas, tanto simbólicas quanto materiais, e podem ser encontradas em objetos, linguagens, costumes, tradições e produtos culturais, como é o caso dos filmes.
Antes de ser assassinado em 1961, Patrice Lumumba, ex-ministro da República Democrática do Congo, afirmou: "Um dia, a África terá uma palavra a dizer; um dia, a África escreverá sua própria história”.
Esse foi o movimento que o cineasta Ousmane Sembène buscou realizar com seus filmes.
Considerado um dos maiores autores do sub-Saara africano do século XX e frequentemente denominado Pai do Cinema Africano, Sembène tem uma obra cinematográfica muito diversa. No entanto, nenhum de seus filmes ganhou tanta projeção quanto La Noire de... (1960), seu primeiro longa-metragem.
La Noire de… (Ou Negra De…, como foi traduzido no Brasil) conta a história de Diouana (Thérèse Mbissine Diop), uma mulher negra que sai de Dacar (Senegal), sua cidade natal, para Antibes (França), a convite de um casal europeu de classe alta, para trabalhar como babá.
No entanto, sua nova realidade não correspondeu às expectativas criadas pelos seus patrões, que incluíam desfrutar da famosa paisagem da Riviera Francesa. Diouana foi enganada e sua rotina passou a se resumir exclusivamente às tarefas domésticas. Ao se afastar de suas raízes, Diouana perde sua identidade como indivíduo.
O estilo de direção de Sembène é seco. Seus planos, frequentemente estáticos e abertos, capturam o máximo de tensão possível na complexa relação Patrão-Patroa-Empregada, que permeia boa parte do filme.
Na primeira parte do longa, de 60 minutos e rodado em preto e branco, vemos Diouana vagando por sua terra. Ela procura emprego, sonha em se encontrar. Passeia com o namorado, usa acessórios e roupas que reafirmam a cultura de seu povo. Nesse momento, apesar da falta de bens materiais, é livre. Está em sua terra.
Mas isso não é suficiente. Não em uma sociedade ainda marcada pela força colonial. Na década de 1960, quando a trama se passa, Senegal já não era colônia francesa, mas permanecia sob a tutela econômica (e cultural) dos europeus. Diouana não está livre dessa influência. Ela quer ir para a França com seus patrões. Sonha com paisagens e com os objetos que chegam até ela pelos mais diversos meios de propagação.
A segunda parte do filme se passa em solo europeu, onde começa o inferno de Diouana. Sembène é muito competente ao construir essa atmosfera asfixiante da nova rotina da protagonista. Longe de sua família e de sua terra, ela se vê presa no próprio sonho. Em um apartamento, exercendo todas as funções domésticas, sem descanso.
Vemos uma Diouana cada vez mais apática, sem expressão. Ela perde sua identidade e sua personalidade. Ao misturar sua rotina com o trabalho, deixa de ser um indivíduo. Passa os dias, todo o tempo livre, trancada em seu quarto, observando pelas frestas da janela as tão sonhadas praias da Riviera Francesa. Tudo ao seu alcance. Essa oposição entre o prometido e o vivido é muito bem construída por Sembène. Em Dacar, há ruas, pessoas, esquinas. Em Antibes, apenas os cômodos do apartamento. O trabalho de Diouana.
Esse movimento representa a ilusão da imigração. O quanto o continente europeu estava (e ainda está) fechado para os povos africanos. Nada é acessível. Por mais que, às vezes, se consiga acessar aqueles solos, não é possível tocá-los.
Uma das melhores cenas do filme é a do jantar. Estão todos à mesa. Diouana, na cozinha, pergunta se pode servir a comida: arroz. A patroa assente. Ao se aproximar, um dos homens pergunta se pode beijá-la, pois "Nunca beijei uma negra antes". Ele a beija. Todos riem.
Outro ponto importante é a máscara que Diouana presenteia à sua patroa pouco antes da viagem. A máscara, uma alegoria que representa a cultura de Diouana, é pendurada na parede do apartamento na Riviera. Em muitos planos, enquanto a patroa comete violências contra Diouana, ela está em segundo plano. Em alguns momentos, a vemos em close-ups, destacando seus detalhes. Sembène constrói, dessa forma, um personagem sem falas. Transforma a máscara em um símbolo muito bem construído.
Diouana perde tudo. Não entra mais em contato com sua família, não recebe dinheiro nem assistência. Luta, mas fica paralisada diante da opressão vivida. Apenas quando se tranca de vez em seu quarto e se recusa a realizar as tarefas, seus patrões tentam resolver a situação. Mas já era tarde.
Longe de casa, Diouana já não era mais nada. Não tinha mais forças para viver.
Movido por uma espécie de culpa cristã, após a tragédia concretizada, o patrão volta a Dacar e procura a família de Diouana. Quer ressarci-los da única forma que entende: com dinheiro.
A cena que fecha o filme é uma incrível ode à revolta contra o colonialismo, com a população do bairro perseguindo o homem branco, que tenta se esquivar de qualquer culpa.
Ele corre pelas ruas, é perseguido de perto por uma criança mascarada. De novo: a máscara, que simboliza a revolta de um povo. O possível renacer anti colonial.
Colonialismo, culpa, dinheiro, trabalho.
O filme de Sembène é preciso ao retratar como o discurso trabalhista sempre se sustentou em uma falácia em que apenas uma das partes tem o direito de lucrar.
Retrata, entre muitas outras leituras possíveis, como a opressão no ambiente de trabalho pode ser definitiva para o destino de indivíduos.
Penso em minhas experiências nos dias de hoje. Quantas violências já sofri no ambiente de trabalho. Nossa era é a do capitalismo tardio. Tudo se resume ao discurso. A performance patronal sobre o home office ser um suposto "mal" para a empresa, quando, na verdade, apenas reduz os gastos da corporação e transforma o ambiente familiar do empregado em um expediente sem fim. Tantas e tantas vezes já fui corrigido por pessoas "acima" de mim no ilusório organograma de funções. Correções sem sentido, sem contexto. Tarefas que não me pediram antes. Quantas vezes já tive que ouvir sermões por um erro em um texto de digitação ou por um slide estar no lugar errado, enquanto minha vida pessoal se desfazia em cada um de seus lugares. É direito do trabalhador chorar? Penso na violência. Penso em quantas vezes já hesitei em me abrir emocionalmente no ambiente de trabalho. Ninguém gosta de quem chora, de quem reclama, de quem justifica erros com desculpas. Não no mercado de trabalho. O trabalho é uma violência. Em tudo o que ele se estrutura.
E nós passamos. Desistimos. Demonizamos os sindicatos. Rendemo-nos a discursos vazios. Esquecemos que somos indivíduos. Votamos em criaturas que enriquecem à custa desse discurso. Coaches. Influenciadores digitais. Seres que vendem. Imagens que se diluem.
Quem compra, em sua maioria é a classe média. Essa que é atingida direto no maxilar por esse vocabulário tão patético quanto empobrecido do ponto de vista da linguagem.
Um filme que retrata muito bem essa relação é Trabalhar Cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra. Na trama, Helena é uma dona de casa que resolve abrir um minimercado. Porém, um dia seu marido perde subitamente o cargo em uma grande corretora, dando início a um processo de desestabilização na família. Há ainda a relação com a trabalhadora doméstica (mais uma vez) que vai trabalhar na casa do casal.
Aos poucos, todos os planos da família desmoronam. Por estruturas mais poderosas. Por forças invisíveis a olho nu. Mas que estão sempre agindo para que apenas a classe dominante se mantenha no poder. Hoje e sempre.
Diouana não encontrou uma saída. Helena não encontrou uma saída. Será que conseguiremos encontrar a nossa?
Recomendação
Dessa vez, como recomendação do que li de mais legal essa semana vai o texto #23 - Não consegui pensar em um tema para hoje, da
. Esse tema é facilmente o definitivo pra mim quando o assunto é escrita literária.
Trabalhar cansa e mata também. Cenas muito profundas as que vc trouxe, fiquei instigada a ver o filme. O Pele negra, máscaras brancas foi das leituras mais difíceis e importantes que fiz na pandemia. Ótimo texto. 😘