Notícias de casa #02: o perigo do embranquecimento.
As notícias de Rogério Sganzerla, O embranquecimento e o lugar do escritor negro no mercado editorial brasileiro.
Ao terminar de ler O Embranquecimento (Patuá, 2024), romance de estreia do escritor Evandro Cruz Silva, foi James Baldwin que me veio à mente.
James Baldwin era um multiartista, mas parecia sempre contrariado com essa atuação. Pelo menos essa era minha impressão antes de conhecer sua obra. Para mim, assistir às suas entrevistas sempre foi sinônimo de desconforto. Apesar de sua profícua obra textual, por um tempo, o que restou de Baldwin foram suas performances nos absurdos "debates" sobre a questão racial nas redes de televisão do seu país. O finado Facebook que nos diga. No auge da rede social zuckerberguiana, todos os dias brotava na minha linha do tempo um vídeo de Baldwin com uma linguagem quase motivacional sobre a necessidade de superarmos juntos a questão racial.
Baldwin, claro, era mais. Principalmente em suas obras, trabalhou para ser reconhecido como aquilo que era de fato: um escritor.
Escreveu romances e contos. Ensaios políticos e pessoais. Críticas e reportagens. Peças de teatro e roteiros para o cinema. Escreveu. Mas os tempos não eram propícios para negros puramente artísticos. Ao ganhar notoriedade, logo foi "empurrado" para o debate social.
Tinha, claro, muito a dizer. Muito mais do que os âncoras (e acadêmicos brancos) engravatados dos jornais estadunidenses. Cínicos, fingiam que a história não estava do lado deles. Baldwin não deixava barato. Muitas vezes, subiu o tom.
Muitos anos depois, com a questão racial ainda não superada, foram esses os seus momentos mais compartilhados na internet. Com o público sempre muito sedento por se posicionar, por se colocar do "lado certo da história. Tudo de maneira palatável e compartilhável.
Foi uma dessas cenas que me lembrei ao terminar de ler o livro de Evandro.
Assista (caso ainda não tenha feito) antes de prosseguir com a leitura:
Hoje em dia, o debate soa absurdo. Todo o seu conteúdo, a composição da cena, o lugar que Baldwin precisa ocupar em seus argumentos. É uma montanha grande demais, até mesmo para um homem com um intelecto tão impressionante quanto o seu. Lembro dessa cena em muitos momentos. Lembro no (já citado) Facebook. Todos os meus amigos brancos compartilhando os absurdos ditos pelo adversário de Baldwin em detalhes. Lembro de uma reunião de amigos (brancos) em que alguém mostrou o vídeo no celular. O olhar orgulhoso. O tapa nas costas. A condescendência (alguns anos depois, iria me deparar com essa condescendência muitas vezes). Um ar cúmplice, de amizade. Querendo um aceno de aprovação da minha parte como efeito rebote. Penso em Baldwin e nesses momentos. Tudo o que meus amigos queriam, tanto ao compartilhar em seu Facebook quanto ao me mostrar ao vivo a cena (que eu já havia visto umas centenas de vezes), era se colocar do lado certo. Era o momento para isso. Era importante. Essencial.
Em O Embranquecimento, acompanhamos a história de Macária, uma intelectual que vive entre dois mundos: a universidade e a vida real. A dualidade é minha. Em tese, a universidade está no mundo real. Mas não pra todo mundo. Quando se é negro, o que acontece é um profundo distanciamento entre o que se vive na universidade e o que está fora dos seus domínios. É um distanciamento real (distância geográfica dos campus até os bairros onde moramos) e etéreo (as discussões esclarecidas dentro sobre racismo nas salas de aulas). Macária sabe disso. Mostra. Em um determinado momento, reflete:
"Fui gradualmente me sentindo uma personagem posta por engano num teatro de comunhão do qual não sei ao certo se faço parte. Quanto mais participava de eventos acadêmicos nos quais discursava sobre o racismo, aumentava minha dúvida sobre se, quando as pessoas falavam 'nós negras', nos debates da faculdade, elas estavam falando sobre quem eu via na cozinha da minha antiga casa." (Trecho do romance O embranquecimento)
Essa fala, na boca da personagem, reflete a distância da cozinha de nossa casa até a sala de aula. O desconforto é constante. A vida acadêmica de Macária é conduzida paralelamente aos seus problemas com o pai, dependente químico, a falta de dinheiro e a incompreensão da família com seu ofício.
Macária não deixa de ser uma alegoria. A representação de uma geração de negros que entrou na faculdade (muitos pela primeira vez entre os seus), mas, uma vez lá dentro, se encontrou em um não lugar. Uma espécie de espaço limiar entre o íntimo (a vida em suas casas) e o público (as novas possibilidades oferecidas pelo estudo). Dentro desse não lugar, as dúvidas são muitas: atender às expectativas e se debruçar sobre o único tema sobre o qual os brancos acreditam que podemos falar com competência? Ir até o ponto que a família acredita ser razoável dentro da vida acadêmica? (Afinal, quando não superamos as questões materiais impostas por uma desigualdade social, pesquisa que não sustenta, que não tem o objetivo claro de conquistar um ofício no mercado de trabalho, não serve para muita coisa).
Macária atravessa todos esses desertos. Decide. Toma decisões. Vai estudar o famoso quadro de Modestos Brocos, por exemplo. Obra que, a exemplo de Mickey Mouse, o cabelo de Ronaldo na copa de 2002 e o gingado de Michael Jackson se tornou quase que síntese de um tema, de um momento histórico. No caso da obra de Brocos, da luta antirracista no Brasil. Ficamos sem saber se a escolha se deu por (pura) vontade ou por entender que, ao se debruçar sobre questões raciais, teria sempre espaço nos congressos acadêmicos. Macária, em muitos momentos, parece muito consciente do jogo. Aceita jogá-lo. Não tem medo de admitir (Por que teria?). Esperta. Não hesita em aproveitar as oportunidades.
"Fiz graduação numa época em que o racismo era um assunto da moda. O programa matinal da televisão falava sobre o racismo, o programa da noite também. Havia páginas dedicadas apenas a transmitir escândalos e violências cometidas contra pessoas negras, tudo em primeira mão. Isso contrastava com o fato de que, no curso de história da arte, mesmo com as ações afirmativas, mesmo com todo o debate sobre antirracismo, naquele ano, na maioria das minhas aulas, eu era a única pessoa negra. Na sala de aula, as garotas brancas chegavam carregando ecobags com a frase 'pele negra, máscaras brancas', ilustrações de Angela Davis, o rosto de Carlos Marighella. Falavam de suas avós negras e parentes imemoriais, inverificáveis, mas certamente indígenas. Gostavam de dançar maracatu, jogar capoeira e demonstrar uma boa vontade com a minha vivência" (Trecho do romance O embranquecimento)
Em sua novela, Evandro não pesa a mão pra nenhum lado. Há uma sociologia minuciosa, expressa em tom de ficção realista, que serve de véu através do qual vemos as peças de um jogo racional complexo que nunca larga dos negros, estejam eles dentro das univerisdades ou não. Entre uma aula e outra, Macária lida com a maternidade, sua família, o futuro, além de buscar a ascensão profissional e social, sem deixar de lado o sublime. Mostrando isso, o livro é o que alcança. E tem muito a nos dizer.
Por isso é literatura. É ficção. Ficção consciente do seu tempo. Que vem no momento certo. O estudo de sua protagonista é rico e merece ser debatido. É um dos grandes livros do ano para mim.
Logo após terminar a leitura, mergulhei nas entrevistas de Baldwin. Vi uma, duas, três. Reconheci em Macária o cerne do paradoxo que Baldwin tantas vezes tentou nos explicar. Qual é o lugar do negro? Na academia? Nos esportes? Napolítica? Não é algo simples de resolver. Não (e nunca será) orgânico depois de tantos séculos de racismo.
Essa reflexão me levou a revisitar um curta de Sganzerla. É um filme menos conhecido do diretor de Bandido da Luz Vermelha (1968) e Copacabana Mon Amour (1970). Chama-se Perigo Negro (1993). Dizem que foi escrito a partir de um roteiro de Oswald de Andrade. É dedicado ao modernista.
Pra mim, Sganzerla é o cineasta mais talentoso que o Brasil já produziu. Um verdadeiro intérprete do Brasil. Nem preciso me estender muito sobre a revolução estética de Bandido da Luz Vermelha e sobre sua famosa obsessão por Orson Welles, que gerou outros excelentes filmes-ensaios dentro de sua filmografia Enfim.
Perigo Negro conta a história de ascensão e queda de um jogador de futebol negro visto por um torcedor fanático e sua mulher volúvel e deslumbrada pelo cartola Moscosão, que destrói a carreira do craque. O que está em jogo em Perigo é sempre o seu corpo. O corpo negro. Sua utilidade. Enquanto serve para os dirigentes e torcedores de seu time, enquanto está saudável e faz jogadas geniais, o Brasil parece se abrir em seu horizonte. Dinheiro, promessas, a vida. Não há limites para o sucesso de Perigo. Até uma lesão aparecer. A partir disso, Perigo é destruido pelas mesmas engrenagens que o levaram aos céus. Tudo desmorona. O sucesso de Perigo era, então, o seu corpo. Nada mais. Como é a trajetória do negro no Brasil.
Serve: enquanto serve.
O gênio é tolhido em um Brasil de brilho mitológico perdido em meio à mediocridade dos endinheirados, à mercê de seus interesses. O roteiro é conhecido: no futebol, carnaval e política (esta última em menor escala) é possível produzir quilos de textos biográficos contando histórias de negros utilitários para uma determinada elite.
Perigo, Macária e James Baldwin estão aglutinados. Juntos. São alegorias de um povo que passa mais da metade da vida tentando se desvencilhar. É um jogo difícil. É preciso jogar no ataque.
Penso na quantidade de autores negros que estão em destaque na literatura contemporânea brasileira. Quem abriu a porta? Até quando ela ficará aberta? Me alegro por ver tantos nomes entre os escolhidos na Flip, publicando livros na Companhia das Letras e sendo convidados para palestras chiques em livrarias paulistas. Mas é preciso mais. Uma vez lá dentro, é preciso esticar o pano, perceber a sua consistência. Refletir. Esticar o jogo. Há um motivo para os brancos esclarecidos nos deixarem brincar um pouco em seus terraços. Cabe a nós entendermos os termos (ler as letras miúdas) e partirmos para o ataque.
Antes que uma lesão nos tire de vez do campo. Mais uma vez.
Pra compltementar a leitura do livro do Evandro, esse ecelente artigo do Paulo Roberto Pires na Quatro Cinco Um.
Até a próxima!
Que profunda reflexão! Fiquei instigada a ler Baldwin. Esse não-lugar de Macária que você comentou, o despertemcimento em uma sociedade que também performa o acolhimento me pegou. Verei o filme também.
Que vontade de reler Baldwin. Estive às voltas com o livro do Evandro, mas acabei nem o começando por conta das textos de que precisava terminar, mas agora já o separei e hoje à tarde inicio. Abraço, Danilo