Notícias de casa #08: ETX/INT
Nesta edição, trago um trecho de um dos contos que compõem meu segundo livro, Até a Última Gota (Mondru, 2023).
INT. ZOOLÓGICO - DIA
O que eu mais me lembro daqueles dias no zoológico era da chuva de suor que tomava conta das minhas bochechas. O cheiro de anis que deslizava para dentro de nossas narinas. Os pescoços tentando encontrar os bichos e a perplexidade juvenil diante das grades. Todos sem mover um músculo sequer. As formigas que escalavam as nossas meias de lã brancas rumo às nossas coxas. Leves e pesadas. Quando eu era criança e ia no Zoológico com a minha mãe, os bichos eram mais bichos. Ela me puxava para explicar que os gorilas eram nossos irmãos de alguma forma. Eu olhava para sua retina através da vitrine e não sabia aonde o gorila queria chegar ali parado. Sentia um ódio seco penetrar a minha epiderme. Era a condição humana por um fio. Eu e ele. Irmãos. Até um de nós dois sermos resgatados por uma distração qualquer. Partia para a solidão da girafa. Andava sem olhar para as suas patas. Não conseguia olhar nos olhos de ninguém. Eu seguia com meu jogo, tentando encontrar as suas retinas. Via ela encontrar finalmente uma nesga de folha para chamar de sua. Antes de mordiscar, parecia presa de alguma forma aquela imagem. Sozinha. Folhas. Era amor. Amor de novo. Até que a fome a resgatava, finalmente. Então se finda todo o amor. O casal de leão que se lambia lentamente, escondidos das verdades do mundo exterior. Pata sob pata. Doentes, doentes. Mortos para o palpável. Prontos para morrer num único mundo. O hipopótamo se lavando eternamente. Um verdadeiro roliço deslizando na superfície penetrável do riacho artificial. Sentia inveja. Um sol terrível molhava minha visita ao Zoológico. Sentia-me encantado com o mundo que se apresentava sem vergonha de ser nu. Sentia vontade de acabar com aquele universo que colocava tudo em outra perspectiva. Os bichos. Poderia invadir as jaulas e atirar nas caras dos animais, para eles deixarem de nos diminuir com as suas retinas. Num só solavanco, minha mãe me puxava para a lanchonete do Zoológico. Fingia me dar opção de escolha. Andávamos entre outras mil mães e filhos nas filas da lanchonete. Nos sentíamos sozinhos. Ouvíamos um silêncio eterno entre a multidão das filas. Olhava pra cima e via minha mãe de pescoço espichado, impaciente. Uma girafa. Instante de dor. Fragilidade. Envelhecíamos juntos e sua imagem já não era mais como eu me lembrava ao nascer. Está magro. Come. Come. Ela me dizia. E eu me sentia um pouco maior quando ela se dirigia a mim. Dias tão tristes no meio dos bichos. Dias tristes como as noites na periferia das metrópoles. A vida passando. O suor secava e formava mais uma marca incoerente na minha camiseta branca. Antes do solavanco final, eu procurava uma resposta na casa secreta dos rinocerontes amarelos. Mas eu sabia que nós estávamos condenados a desaparecer.
EXT. CAMADAS - NOITE
Falência múltipla dos órgãos, mas só o rim parou. FA-LÊN-CIA. Você já ouviu falar? Falou pausadamente. Ela morreu durante o mês de agosto. Um mês sem feriado. No mês de aniversário de Napoleão e que foi firmado o acordo entre os Estados Unidos e a Rússia pelo Alasca. Sei disso porque foi o que eu fiz na sala de espera do hospital. Fatos históricos que ocorreram em agosto. Mês da morte de minha mãe. Encontrei o seu corpo esticado na maca de uma sala branca. É ela? Não. Não era ela. Sim, respondi. É ela. Um tumor no rim havia estourado e matado todos os outros órgãos. FA-LÊN-CIA. Já ouviu falar? Parecia um animal empalhado. Seu olhar buscava o último céu. Inerte. Os seus membros tensionados. Sua boca semiaberta, buscando empurrar o último ar pra dentro. Lembrei de Camus. Mas poderia ter lembrado de qualquer outra pessoa que já perdeu a mãe, como minha avó. Ou Napoleão. Ou eu. Teve convulsão na hora da morte. Passaram um silver tape bem apertado nos seus pulsos. O hospital vai apurar o caso. Abrir um chamado para investigar o caso. Não disse o nome de ninguém. Sua vida estava fechada, finalmente. Em casa, conseguia ver o seu rosto refletido no espelho do banheiro. Senti um medo bobo de ficar sozinho. Liguei para Gio. Sua mãe havia piorado. Fiquei preso. Fui fazer a barba para o enterro e meu rosto começou a sangrar. A lâmina me cortou um pouco por querer me acordar. Tentei de novo. Vi seu rosto. Havia envelhecido e puxou minha mão para terminar o serviço. Quis pedir para parar. Fechei os olhos. As cortinas dançando conforme o gosto do vento. As janelas abertas. A cidade correndo. Tudo geometricamente artificial. Tombo a cabeça para o lado. Ela não existia mais.
INT. LISTA - NOITE
Das coisas que tenho medo de levar na mala depois da morte de minha mãe:
- FÂ-LÊN-CIA
- Sonhos bobos de infância
- Lembranças falsas
- Meias furadas
- Nefroblastoma
- Mitose
- Colo de mãe
- Calças da infância
- Hábitos que herdei
- Bolo de cenoura com cobertura de chocolate
- C-O-R-A-Ç-Ã-O
- O jeito que ela mexia no cabelo
- O seu medo das primeiras noites nos hotéis
- Identidade
- O medo de me mover
- Maca
- UTI
- Fotos
- Esperança
INT. DANÇA NA COZINHA - NOITE
Por ora, escuto os gritos de mamãe. Sinto pedaços do piso frio beliscando o meu calcanhar sujo. Me aproximo aos poucos do topo da escada. Abaixo o pescoço e o que toca a minha pele é o vento preguiçoso da madrugada. Começo a descida. Degrau por degrau. Antes do derradeiro, já posso ter uma visão satisfatória: o homem a agarrava pelo pescoço e os dois se esfregavam no chão da cozinha. Quero recuar, mas a imagem amorfa me prende. Estático. Na cozinha, a luta parece não ter fim. Minha mãe olha para os fundos de nossa casa da rua Lisboa. O homem olha pra mim. Sorri. Moscas lentas vagam por todos nós. No primeiro degrau, o bafo quente vence a dança contra o vento. Começo a suar. Aquela dança mística pode ter durado segundos ou dias. Eu preso, como um delírio. Ou uma febre. O olhar do homem como se me fumasse, carregando a minha mãe como um inseto de carapaça dura. Epilético. Até o golpe final. Ele faz um movimento brusco e a põe de joelhos como uma santa. Assusto. É nesse momento que ela me vê. E fulmina. Se levanta num choque. E vem em minha direção. Ele sorri, desfocado. Aquela cena, apesar de tudo, prova que estou vivo. E essa era nossa vida. Mamãe e eu. Ela que, na ânsia de me tirar daquele sonho, roça suas auréolas famintas em meu pescoço. Me desliza escada acima e me joga no centro do quarto. Sem falar nada. Antes de fechar a porta, sempre me lembro do seu olhar. Não tem nada mais a fazer. Era isso que nós éramos. A nossa vida. A ideia do desejo sobre o desejo me deixa inquieto. Parasita. Mamãe, onde você enfiou meus sonhos naquela madrugada? Não sinto mais o chão. Precisamos de descanso. Apesar de tatear todos os cantos, não encontro o meu lugar no quarto. Exalo ódio. Mas o vento da madrugada finalmente me vence e eu morro por mais algumas horas.
EXT. ADEUS - NOITE
O amanhã não vai nos despertar nunca. Gio me liga quando estou no aeroporto para falar algo sobre as entrevistas. Arrasto uma mala pela manhã fria. Ultrapasso calcanhares, passo por cima. O voo para Boa Vista sai em poucas horas. Decido me jogar em qualquer canto daquele balcão publicizado. Observo pequenos cachos de criaturas que buscam refúgio em outros retalhos da sociedade. Se deslocar, esquecer as suas vidas. Me atormentam. Crianças se arrastando brutalmente arrancadas do útero de seus sonos eternos. Já reparou como o silêncio das seis horas da manhã nos instiga a morte? Prateleiras lotadas. Atendentes caolhas. Gerentes preocupados. Amontoados de células que se debatem em busca do fim do dia. Bicicletas coletivas arrancam do solo, pousam na pista. Pois bem, aguardo a vez de me sentar. Iremos ficar escutando o motor que nos move daqui. Meu celular toca. Derrapo num resto de vida. O Ifood me lembro que é hora do café da manhã. João está vendendo sua casa em Florianópolis. Roberto protesta sobre a questão indígena no país. Diego vende seu novo livro de poesia. Mariana gosta de ouvir Natiruts. André tem saudades dos bons tempos do teatro na cidade. Andrea está feliz em seu intercâmbio na Irlanda. Raduan tem 10 álbuns que definem sua infância. Gio pagou cerveja para toda a redação no bar do Estadão. Lucas quer ser chamado de Rogéria. Camila estava às 14:35 começando os trabalhos. Natasha assistiu ao último filme de Lars Von Trier na unidade Frei Caneca do Cinema Itaú. O Deputado Renato acha injusta a sua cassação na Câmara de Curitiba. O “nóis no Insta” está com 50% de desconto em seu curso de marketing digital. Santiago já falou sobre punheta no programa do Jô e Keila ama a cerveja Original. Vana tem saudades da viagem de carro até a Argentina que fez com os amigos em 2005. Morel Revista entrevista o escritor João Paulo Cuenca nessa edição. A 1,2,3 milhas vende passagem de ida e volta até Paris por R$ 1.799 e o Relatos de Motos vende uma Chopper Road 160 por R$ 11.000. O PT quer que você vote no Lula contra o fascismo. A Folha de São Paulo colocou no ar mais uma crônica do Antônio Prata. Marina Mah escreveu os versos “Tudo é fachada na cidade pequena”. E o gato da Juliana morreu na madrugada de ontem. Outra Juliana pode falar por horas de relacionamentos, sabores de pizza e séries da Netflix. Beatriz tem um irmão que vai ser pai. Renato, o tatuador, está com a agenda fechada para agosto e o Prêmio Candango de Literatura abriu inscrições para contos e romances. Mario passou a noite com Bressane e Harry Potter. Rafaela fechou o mestrado de comunicação em Portugal. Nada. Nada. Isa abriu inscrição para um curso de leitura crítica, e terminou ontem de ler A Montanha Mágica. Nada. Nada. Claudio está indignado com o assassinato de uma menina de 11 anos em Belo Horizonte. O filho do homem mais rico do país morreu por conta de uma má formação no coração. Renan ama gatos e pode te ajudar a cuidar do seu por apenas R$ 19,90 a hora. Ana lançou um novo single e, para o ouvir no Spotify, é só clicar no link. Letícia acordou às 5 horas para levar a filha até a casa do ex-marido. Às 7 horas já estava na esteira da academia. A Pizza Hut está com pizza em dobro nessa quinta. Nada. Nada disso importa e, quando eu me sentar na poltrona C-4 do voo LA-3900 rumo a Boa Vista e fechar os meus olhos, não me lembrarei de mais nada dessas coisas.
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