Notícias de casa #05: a substância da passagem do tempo
O poder do avesso: a força da abjeção no filme "A Substância" (2024)
Em 1980, Julia Kristeva publicou o livro Powers of Horror: An Essay on Abjection. Nele, a pesquisadora introduz o conceito de abjeção pela primeira vez. Combinando psicanálise, literatura e antropologia, Kristeva define abjeção como algo de um “eu” que precisa ser expulso, ejetado. A abjeção está intimamente ligada à oposição entre "eu" e "outro" e, em um sentido mais primitivo, entre "dentro" e "fora".
Para Kristeva, algo do sujeito precisa ser "abjetado", ou seja, expulso, pois esse "outro" não é externo, mas surge do próprio processo interno de individuação – o processo pelo qual todo indivíduo passa ao deixar de se reconhecer em certo ponto. Kristeva utiliza a figura da mãe como central nesse processo, pois, inicialmente, o bebê a percebe como uma extensão de si. Contudo, é justamente essa parte-mãe que ele precisa abjetar para se constituir como um "eu", para se reconhecer como um todo. Kristeva afirma:
"O abjeto nos confronta, em nossa arqueologia pessoal, com nossas tentativas mais antigas de nos distinguir da entidade maternal antes mesmo de existirmos fora dela, graças à autonomia da linguagem" (Kristeva, 1980, p. 18).
É justamente a aplicação desse conceito que torna The Substance (2024), da diretora Coralie Fargeat, um dos grandes lançamentos do ano. Fargeat não é uma novidade. Ela já havia agradado boa parte da crítica com seu longa de estreia, Revenge (2017). Em The Substance, contudo, ela vai além.
Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é uma apresentadora de televisão em decadência que se vê surpreendida ao ser demitida de seu programa de fitness na TV. Em busca de um recomeço, ela decide testar uma droga do mercado clandestino que promete replicar suas células, criando temporariamente uma versão mais jovem e aprimorada de si mesma. O experimento funciona. De Elisabeth, nasce Sue (Margaret Qualley), uma versão renovada de si.
"Um novo você, mais jovem, mais bonito, mais perfeito. Só existe uma regra: vocês compartilham o tempo. Uma semana para você. Uma semana para o novo você. Sete dias para cada. Um equilíbrio perfeito. Fácil, certo? Mas não se esqueça: vocês não são duas, são apenas uma". Essa explicação é repetida várias vezes durante as quase duras horas e meia do filme. Um personagem invisível a repete insistentemente, sempre que algo dá errado.
Fargeat é muito habilidosa em filmar a dicotomia entre as duas versões.
Elisabeth é filmada em ritmo lento, com uma câmera distante e poucos movimentos, repetindo ações e atenta às marcas do tempo no corpo da personagem. Demi Moore, atriz cujo corpo e beleza muitas vezes foram mais comentados do que seu talento, nos oferece aqui a grande atuação de sua carreira. Elisabeth está desesperada. Sente as cicatrizes do tempo na pele, as rachaduras, as linhas, as rugas. Ela se olha no espelho com raiva, e mantém na sala de sua casa um enorme quadro de si mesma mais jovem, no auge de sua beleza. Tem propagandas e outdoors, com sua imagem retocada, espalhados pela cidade. Mas, nada disso é verdadeiro. Nada disso reflete o que ela vê no espelho. Com o tempo, à medida que Sue entra em cena, o ressentimento de Elisabeth pela indústria que a descartou se transforma em ódio – por si mesma, claro, mas principalmente por todos que sustentam a cultura das imagens perfeitas, dos filtros e da eterna (e impossível) pressão pela juventude.
É um acerto ter Moore no papel de uma personagem tão simbólica. Aos 61 anos, sua atuação atinge o ápice, refletindo uma realidade que ela conhece bem: as pressões, as reuniões com produtores desprezíveis, o ser vista apenas como um corpo-não-pensante, objeto do olhar fetichizado masculino reproduzido pelo cinema. Elisabeth está o tempo todo entre o reflexo e o real. A imagem reproduzida no espelho x o que ela vê x a imagem real. O equilíbrio dessas forças se desfaz a cada dia. Afinal, o filme trata da misoginia sofrida pelas mulheres de forma escancarada e estrutural, mas também da internalização dessa opressão. Sozinha, diante do espelho, Elisabeth não suporta mais sua imagem. Uma imagem que um dia foi admirada e celebrada, mas que hoje está esquecida e não serve mais.
Outro grande acerto de Fargeat é dar a parte de Sue um outro ritmo. Sue é a personificação da juventude. Seu corpo, cada detalhe, foi moldado para ser apreciado pela indústria: flexível, liso, sem marcas. Sue rapidamente toma o lugar de Elisabeth no programa do qual ela foi demitida. Todos a adoram. A audiência sobe, os executivos ficam eufóricos. "Uma garota bonita está sempre sorrindo", diz um deles. E Sue cumpre esse papel. Ela se embriaga com a fama, o sucesso e a apreciação de todos. Sue representa o estereótipo do jovem que despreza o antigo, que não reflete sobre a passagem do tempo e acredita ser eterno. A indústria sabe usar suas forças para seduzir e controlar. No fundo, Sue é o desejo profundo de Elisabeth de ser apreciada novamente, numa luta utópica contra o tempo. Para representar essa ideia, Fargeat usa uma câmera em close-up com Sue, com planos invasivos ao seu corpo e movimentos bruscos, cores ácidas e vivas das ruas, das roupas, numa Los Angeles que não é uma cidade real, mas parte de um sonho perfeito da juventude. Fargeat se associa, assim, ao Cinema Extremo Francês, um movimento surgido nos anos 1990 e início dos anos 2000, liderado por diretores como Gaspar Noé e Pascal Laugier, cujos filmes abordam temas violentos, perturbadores e intensos.
A genialidade de Fargeat ao adotar o Cinema Extremo está em subverter os princípios do movimento. Críticos apontam que muitos desses filmes reforçavam a violência contra mulheres, ao invés de questioná-la. Eu concordo. E acho que Fargeat também. O seu filme grita isso. Em The Substance, Sue é objetificada o tempo todo, seu corpo é filmado como Gaspar Noé aprovaria, mas a montagem e a direção transformam essa objetificação em uma crítica das mais fortes que já vi nos últimos tempos.
Para coroar um filme quase perfeito, temos o final. Vinte minutos em que Fargeat abdica do controle estético da trama para presentear o espectador com o mais puro visual thrash de transformação de um body em horror. Em uma sublime catarse esperada por todos que se entregarem a ideia do filme.
No final, a dicotomia entre Elisabeth e Sue se dissolve. Sue pratica uma autofagia do corpo de Elisabeth, consumindo tudo o que a indústria deixou de sua matriarca. Sue, por sua vez, é sugada pelo ressentimento de quem já passou pelo mesma violência. O limite entre elas desaparece, e o filme continua a ressoar mesmo após os créditos finais.
Recomendação da semana
Dessa vez, como recomendação do que li de mais legal essa semana vai o texto O canto do cisne nos cinemas de Sganzerla, Ford, Cimino, Godard e Mizoguchi, da news Locadora Fiore!
Um dos ensaios mais legais sobre filme que tivemos por aqui nos últimos dias.