Notícias de casa #01: ensaiar o começo.
As notícias de Chantal e do meu professor de literatura que pigarreava.
Geralmente, começo essa história de outro jeito. Mas pode ser assim.
Um dia, um professor, uma sala de aula, uma sensação de tédio, uns trinta adolescentes, uma aula de literatura. O professor (coitado) tentava nos explicar a importância de um livro escrito no século XIX por um homem com ideias (no mínimo) controversas. Tentava nos fazer ler (um romântico). “É um livro de histórias”, disse em determinado momento. “Repleto de sexo, amor e ideias sobre a sociedade.” Nenhuma reação. Sequer um movimento. “Vocês vão amar, amar”, finalizou enquanto distribuía os exemplares. Esse professor tinha um tique: limpar a garganta a cada vírgula necessária. Entre uma fala e uma pausa para o pigarro, acho que me compadeci. Senti pena daquele homem com a cabeça tão branca que parecia ter acabado de sair de uma piscina de neve. Deixei que sua fala me acompanhasse até em casa. Os alunos ganhavam os livros. Os livros do semestre. Geralmente, eles ficavam no fundo da mochila até a semana da prova. Mas aquele homem me comoveu. O barulho do seu pigarro, cada vez mais alto pela sua exaltação, fez uma tristeza invadir a minha dura alma adolescente. Cheguei em casa, peguei o livro. Aproveitei o que pude. Fui até o fim. Uma tarde e uma noite. Realmente tinha muito sexo e violência. Fechei o livro. Fui dormir. No outro dia, algo tinha mudado em mim. Não, nada no plano astral. Não, nada que me tirasse da rotina de passar horas (e mais horas e horas) jogando FIFA no Xbox 360, futebol na rua e, nas horas vagas, assistindo a mais futebol pela televisão. Mas, esse dia, esse livro, esse livro, me fizeram ao menos dar mais chances para outros livros, outros homens, outros dias. Só muito tempo depois pude entender que aquele dia foi o meu 01 na literatura. Nada demais. Muitas pessoas passam por esse dia e seguem suas vidas sem grandes perturbações, mas, para mim, foi o que me fez chegar até esta newsletter.
Sim, isso que você está lendo é uma newsletter. “Mais uma?”, o leitor me pergunta. Sim, mais uma. Desculpe. Quando escrevo, de certa forma, me vejo como meu professor de literatura gritando e pigarreando na frente de trinta adolescentes entediados. Apesar disso, escrevo. Não acho nada demais. Nada especial. Mas escrevo. Linha após linha. Só isso.
Busquei por algum tempo um texto que pudesse ser o 01 deste espaço. No meio do caminho, tinha os reels, os stories, um bom livro, a hora do ponto no trabalho, a reunião com o orientador do mestrado, um curso aleatório que me inscrevi por impulso. Desisti. A semana passou. E mais uma, mais uma, mais uma. Voltei.
Eu escrevo. É assim que me apresento no Instagram. É assim que as pessoas me conhecem (Não que isso me traga alguma vantagem ou sequer um sorriso). Escrevo no trabalho, na literatura, no mestrado. Escrevi dois livros. Escrevi dois curtas-metragens. Escrevi matérias de jornal. Escrevi uma peça de teatro. Escrevo (agora) uma newsletter.
Não que esta seja a primeira. Para quem escreve, um projeto quase nunca é o 01. Já tive outra. Já pensei em outras dez. E qual a diferença desta? A diferença é que decidi deixar este um espaço mais livre de escrita. Estava sentindo falta disso. Entre um livro e outro. Por isso, não pensei em nenhum tema central, nem em periodicidade. Decidi voltar a esse mundo porque tem muito assunto que não sustenta um livro e não cabe na ficção, mas sobre o qual eu gostaria de tentar escrever. Minha única ideia para o Notícias é que seja uma newsletter de ensaios. Por que ensaios? É um gênero permissivo o bastante. E também, na minha visão, um pouco mal explorado.
Tem ensaio pessoal, acadêmico e social. Tem ensaio humorístico, político e livre. Ensaio. Tem? Tem. Vale tentar. Voltar. Errar. Vale. Por isso ensaio.
Ensaio.
Antes de cortarmos a cena 01, é preciso tirar uma pedra do caminho.
Explicarei porque Notícias de Casa. Primeiro, porque traz dois elementos que resumem como pretendo nortear este espaço: as notícias podem ser tudo ou nada. O menu do meu jantar é uma notícia? Sim. O Santos superou o Paysandu e se mantém firme na briga pela liderança da série B é uma notícia? Também. De magnitudes e interesses diferentes. Qual a mais importante? Depende do ponto de vista. Para o meu sistema digestório, a primeira. Para a (angustiada) torcida santista, a segunda. Já casa é um vocábulo que faz a interseção perfeita entre público e pessoal. Pode ser memória, família e traumas. Como pode ser também apenas uma caixa de concreto para quem acelera um Chevrolet na sua rua. Depende do ponto de vista. Essa é a magia do ensaio. Depende do ponto de vista.
Agora, tem uma outra explicação um pouco mais rebuscada (poderia cortar a primeira e deixar apenas esta para me colocar em melhor estima intelectual diante do público, mas deixarei as duas): esse é o nome do meu documentário preferido. Na década de 70, a cineasta Chantal Akerman saiu da casa de seus pais em Bruxelas para passar uma temporada em Nova York. Pela primeira vez, se via longe. Longe de seu país, da mãe, de sua cultura. De tempos em tempos, sua mãe lhe enviava cartas com … notícias de casa. Tempos depois, Chantal fez um documentário em que as cartas de sua mãe dialogam com cenas frias e distantes de uma Nova York julgada pelo seu olhar estranho. Olhar de estrangeira. As cartas são narradas pela própria Chantal. As cenas são dos metrôs, dos prédios e das ruas abarrotadas de sombras. Sem rostos, entre propagandas e latas de lixos, as pessoas rastejam os seus esqueletos pelas esquinas da cidade mais simbólica do século XX. Essa interseção entre imagem e som segue por 90 minutos. Cartas. Cidade. E é apenas isso. Tudo que Chantal nos oferece, com exceção de uma pequena introdução. Apenas isso. Conforme o tempo passa, o conteúdo das cartas ganha melancolia, tristeza e desespero. Sua mãe sente saudade de lá. Chantal sente saudade daqui. Ações do tempo. Enquanto isso, as imagens seguem frias. Tanto na paleta de cores quanto na distância que a câmera adota das ações de seus moradores e da arquitetura. Essa simbiose, que só o cinema é capaz de produzir, traduz o sentimento de não pertencimento de um estrangeiro. Um sujeito longe de sua terra. Fora da raiz. Incapaz de florescer e se integrar em outro solo. Fala sobre a Europa do pós-guerra. Da vida nos Estados Unidos. Ou seja, em um só filme, Chantal faz um ensaio poético, político e pessoal. E é isso que pretendo fazer nas próximas edições desta newsletter.
Espero poder contar com a sua companhia. Obrigado pela leitura até aqui.
Um agradecimento inicial
Essa publicação jamais sairia do papel se não fosse a ajuda da
que, em seu excelente curso sobre produção de Newsletter, tirou minhas dúvidas e deu um empurrãozinho pro projeto sair do ar.Como pretendo sempre finalizar as edições com uma recomendação, fica aqui a primeira para se inscreverem na newsletter que ela escreve ;)
Casa é um excelente ambiente de ensaios.